Hora de Inverno

 

Ontem, por esta hora, estava em Lisboa, naquele bar simpático, na Bica, que se estende por dois andares de esplanadas, com uma vista sublime sobre o Tejo, a Ponte 25 de Abril, o percurso incansável dos cacilheiros, a Lisnave, Cacilhas, Almada e uma cascata de telhados e antenas de televisão, prédios devolutos e casas recuperadas, ruas estreitas e muito horizonte.
Ontem, por esta hora, estava em Lisboa, naquele bar simpático, cheio de pessoas simpáticas, que fazem fila à espera de lugar, na plateia ou no 1º balcão, confiantes de que a grade providencial as isola da multidão de alcoólicos, toxicodependentes, sem-abrigo, cães, excrementos, polícias decorativos e turistas que povoa o miradouro do Adamastor, e lhes permite continuarem a sentir-se simpáticas.
Ontem, por esta hora, como todas as pessoas simpáticas que lá estavam, admirava o pôr-do-sol, as tonalidades avermelhadas do céu e as luzinhas que, gradualmente, se iam acendendo pela cidade. Pensei na sorte que tínhamos em poder usufruir de um fim de tarde tão bonito, depois de uma semana de temporais, e lembrei-me de que, com sol ou sem ele, hoje ia anoitecer uma hora mais cedo.

Gaivota



Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
morreria no meu peito,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.



Letra de Alexandre O'Neill, música de Alain Oulman, interpretação de
Amália Rodrigues, Fado Corrido, EP 45 RPM, Columbia, 18-10-1964
(também em Fado Português, LP 33 RPM, Columbia, 1965).

Sete naves



Vejo um rio
Vejo destroços de metal a flutuar
Vejo um rio, provavelmente o Tejo
Desejo de me afundar
O Sado a sede sinos sinetas, ao acordar
Vejo um istmo, isco com ritmo
Páro de martelar

Vejo os meus dedos metálicos frios
Vontade de enferrujar
Vejo limalhas de ferro macio
Volumes por carregar
Vejo estas veias estalando, artérias por soldar
Vejo nuvens ricas de carbono - diáfanas
D'envenenar

As naves que eu construo
Não são feitas para navegar
Aguentam a violência de um beijo
Mas nunca a do mar

As vagas onde elas vogam
Fundem-se com o ar
Vão e vêm voltam-se devagar

As naves que eu construo
Não são feitas para navegar
Aguentam a violência de um beijo
Mas nunca a do mar

As vagas onde elas vogam
Fundem-se com o ar
Vão e vêm se se voltam devagar
Letra e música de Rui Reininho, Alexandre Soares, Jorge Romão e Toli, interpretação de
GNR, Os Homens Não Se Querem Bonitos, EMI - Valentim de Carvalho, 1985.