Caça e (re)colecção

 
 
 
 
 
 
 
 

Isto do coleccionismo, quando é levado a sério, tem que se lhe diga. Um dia, íamos penosamente a atravessar Hamburgo, pelo meio do trânsito e da chuva, quando fiz parar o carro ("Sei lá, estaciona em cima do passeio, que eu volto já!") e saí a correr, de máquina fotográfica em punho, já ligada, que a polícia de trânsito, na Alemanha, não é para brincadeiras. Tinha vislumbrado uma manada nova.
Fotos de um lado e de outro, individuais e em grupo, e algum trabalho para casa. Sim, porque eu não me lembrava de nenhuma CowParade em Hamburgo (bem bom foi apanhar a de Copenhaga - duas na mesma viagem já era fruta a mais). E não era: as vacas pertenciam a uma iniciativa do Verlagsgruppe Milchstrasse, uma empresa editorial do grupo Burda (sim, sim, cujas origens ascendem àquela famosa revista de moda e confecção que as mães da geração da minha coleccionavam e a que davam o devido uso). A dita iniciativa visava, como é normal nestas coisas, um leilão, recheadinho de vedetas, para fins de caridade. As vacas são perfeitamente confundíveis com as da CowParade - algumas delas podem ser vistas aqui -, o que torna este tipo de eventos cansativo. Faz-me lembrar como esmoreceu o meu interesse filatélico, quando descobri que estavam a ser impressas edições, só para coleccionadores, de selos que nem bem selos eram, visto que nunca haviam de ser colados num envelope ou num postal e nunca haviam de ir mais longe que o álbum do coleccionador que os adquirisse.
O conceito de arte de rua em forma de objectos produzidos em série e decorados de forma exclusiva, espalhados depois por uma cidade, teve origem em Zurique, em 1986, então com leões, o símbolo da cidade. Em 1998, também em Zurique, a primeira exposição de vacas, a Land in Sicht, ideia que seria importada, no ano seguinte, para Chicago. A então denominada CowParade espalhar-se-ia depois pelos EUA, passaria para a Austrália e para o resto do mundo.
Em Junho de 2001, surgiram, em Berlim, os Buddy Bears, baseados no animal símbolo da cidade, que viriam a tornar-se eles próprios símbolo de tolerância e paz, o que os tem levado, também, pelo mundo fora. No Verão passado, em Berlim, cruzei-me com três deles: o #01178, na esquina da Niederkirchnerstraße com a Wilhelmstraße, o #00421, já muito vandalizado, entre a Friedrichstraße e a Unter den Linden, e o #00681, junto ao nº 26 da Taubenstraße.
Em Hamburgo, tropecei também em três Hans Hummel. Este ícone da cidade baseia-se na figura de Johann Wilhelm Bentz (1787-1854), um castiço aguadeiro que deixou marcas na história de Hamburgo, que, em 2003, o recordou com 100 clones.
Já em Agosto de 2001 me tinha deixado fotografar, junto à CN Tower, com o Mountie Moose, um simpático alce vestido de polícia, que, sem que então eu o suspeitasse, era o 48º dos 326 alces da exposição urbana Moose in the City, realizada em Toronto, em 2000.
Em Setembro de 2006, passeando pelo centro de Varsóvia, saltou-me para a frente da máquina, de dentro do átrio creio que de um hotel, a Human Touch, da CowParade Warsaw 2005.
Decididamente, acho que são elas que me perseguem. Caçada, mesmo, foi a Cândida Charneca, após ter sido arrematada por 15 mil euros, no leilão da CowParade Lisboa 2006.

(E)feitos de luz



A expressão tricks of the light habitava a minha imaginação desde a adolescência, já nem sabia bem porquê. É daquelas de que gosto, e pronto, daquelas que ganharam um valor próprio no meu vocabulário, ao ponto de deixarem de pertencer a uma qualquer outra língua que não a minha e de tornarem absurda qualquer necessidade de tradução. Daquelas que fazem uma pessoa parecer emigrante ou snobe.
O fenómeno do emigrês é um dos que sempre me interessaram, a que não é estranho o facto de ter tido, desde que me conheço, grande contacto com emigrantes. A explicação é sempre a mesma: qualquer empréstimo linguístico vem suprir uma falta da língua em que se vem integrar, ao nível da designação de uma realidade que é estranha à comunidade linguística que a fala. Essa lacuna é sentida no contacto entre diferentes culturas, e o método mais utilizado desde sempre, em todas as línguas, é o de a língua que a não tem tomar de empréstimo a palavra (ou expressão) utilizada pela língua que a tem, adaptando-a depois, com o tempo, no que diz respeito aos sons e à escrita. Foi assim com quase tudo o que temos e comemos, desde a laranja ao ketchup, passando pela banana, o chocolate, o esparguete e o croissant.
O mais interessante no fenómeno do emigrês, quanto a mim, é que, ao contrário dos empréstimos que são absorvidos por uma grande comunidade e que depois se generalizam e oficializam, os empréstimos do emigrês estão relacionados com o vocabulário específico de pequenas comunidades ou famílias, que depende em grande medida do seu grau de escolarização e de conhecimento do mundo através da sua língua materna. É por isso compreensível que muitos estrangeirismos só tenham entrado no vocabulário dos nossos emigrantes por eles desconhecerem a existência de palavras correspondentes no português. Por exemplo, ouvi emigrantes nos EUA utilizarem termos como jusse, frisa e vaso para se referirem, respectivamente, a sumo de fruta (embalado), congelador e autocarro (escolar). Não que não existisse designação para esses objectos em português: eles é que não tinham tido contacto com eles antes de saírem do país e, portanto, não sabiam como lhes chamar.
Mas há ainda aqueles casos de tradução difícil, como driveway, por não existir em português uma palavra que lhe corresponda, mas apenas perífrases mais ou menos longas. E aqueles que, traduzidos para o português, perdem a mística que lhes está associada, como Weltanschauung. E aqueles que nos fazem sentir mais cultos e globais, como blasé e, claro, snob.
Apesar desta longa excursão, tricks of the light não tem (necessariamente) nada a ver com isto: não é uma expressão que eu use correntemente, apenas foi a primeira que me veio à cabeça quando pensei em intitular um conjunto de efeitos de luz captados fotograficamente (passe a redundância, porque, na sua essência, a fotografia é isso mesmo). E pareceu-me tão adequada, tão feitinha à medida, que fiquei mesmo por ela.
Mas, ultimamente, começou a pesar-me o plágio: aquilo tinha dono, eu é que já não me lembrava quem. Puxando pela cabeça, vieram distantes associações musicais, coisas que o meu irmão ouvia - Genesis, talvez. Mas depois de pôr os googlónios a funcionar, lá me lembrei: os Genesis tinham, de facto, um título giro, mas era A Trick of the Tail, álbum e tema de 1976; Tricks of the Light é o título de uma faixa do álbum Discovery, de 1984, de Mike Oldfield. O mais assombroso é que me lembrei que ainda tinha um álbum de Mike Oldfield, que por acaso até era o Discovery, e que consegui pôr o meu velhinho gira-discos a funcionar, limpei o vinil e, do prato que já não calibra bem as rotações, através de uma agulha romba, o som lá chegou a umas colunas roufenhas e saiu cá para fora. Não gostei - aqueles sintetizadores trinados dos anos 80 conseguem, por vezes, desagradar-me. Mas ouvi com gosto To France, o grande hit (como é que se diz em português?...) do álbum, e aproveitei a rodagem (literalmente) para matar saudades dos meus discos antigos (Bruce Springsteen, U2, David Bowie...) e dos efeitos sobrepostos dos riscos e marcas no vinil.
Concluindo, decidi escolher um novo título para as minhas experiências com os efeitos de luz.




Portalegre, 4 de Janeiro de 2008

B



Ainda sou do tempo em que se chamava "elefante branco" ao Centro Cultural de Belém. Lembro-me da polémica que se seguiu à decisão da sua construção, que varreu todas as possibilidades, dos argumentos estéticos às questões financeiras, e que foi maior do que a que se levantou a propósito da construção ou remodelação dos 11 estádios de futebol para o Euro 2004.
O argumento principal para a construção do CCB foi a necessidade de um espaço capaz de acolher condignamente a primeira presidência portuguesa da União Europeia, em 1992, e, adicionalmente, a necessidade de um grande pólo de actividades culturais e de lazer na cidade de Lisboa. A meu ver, o tempo encarregou-se de esbater as questões estéticas (o Mosteiro dos Jerónimos não ficou nada incomodado e a pedra tem envelhecido muito bem) e de provar a importância daquele espaço para a vida da cidade e para a dinâmica cultural da cidade e do país (de que é o maior complexo cultural).
Desde o início, as valências do CCB agruparam-se em torno, sobretudo, do Centro de Reuniões, do Centro de Espectáculos e do Centro de Exposições, este último constituído por quatro galerias, destinadas a albergarem exposições de artes plásticas, arquitectura, fotografia e design. Chegou mesmo a existir um Museu do Design, com uma vida atribulada, que não cheguei a visitar. Andava de dia para dia, mas ora fechava, ora reabria, até que me informaram de que estava prestes a encerrar em definitivo, para dar lugar a um novo espaço para a colecção de arte moderna e contemporânea do comendador Berardo. O que eu não percebi, na altura, é que a Colecção Berardo iria ocupar a totalidade do Centro de Exposições, que assim deixou de existir. O que deu início a nova polémica.
Da minha relação com o Centro de Exposições do CCB, recordo, em particular, exposições ainda recentes, como Bodylandscapes de Rebecca Horn, em 2005, e Vida e Obra de Frida Kahlo e Conceitos para Uma Colecção, de Helga de Alvear, em 2006. Antes disso, muitas outras, como, por exemplo, assim de cabeça, de Gilbert & George, de Frank Lloyd Wright e várias mostras da World Press Photo. As exposições deste ano da World Press Photo, em Portugal, estão agendadas para Portimão e para a Maia. E há muito (mais) quem diga que Lisboa perdeu importantíssimos espaços para exposições - quem de direito que encontre agora alternativas. Mas, contas feitas, e por paradoxal que pareça, a cultura nunca ocupa lugar, e nunca é demais.
A criação do Museu Colecção Berardo de Arte Moderna e Contemporânea e a sua instalação permanente no Centro de Exposições do CCB encontram-se regulamentadas pelo Decreto-Lei nº 164/2006, de 9 de Agosto, que cria a Fundação de Arte Moderna e Contemporânea - Colecção Berardo.
O Museu abriu as portas em Junho de 2007, com o anúncio de entrada gratuita durante algumas semanas, que se estenderam a meses, depois até ao final do ano. Após alguma hesitação, lá me decidiu a gratuitidade e fui antes que acabasse, já em meados de Dezembro (afinal, as borlas vão prolongar-se até ao final de 2008).
A exposição permanente encontra-se organizada em torno de núcleos temáticos, como: Surrealismo e mais além, Picasso, 1929, Poder da Cor, Minimalismos, Pop & C.ª, Autonomia e Figura Reinventada, onde estão representadas mais de 70 correntes artísticas dos séculos XX e XXI. Ainda a colecção In Situ, composta por obras encomendadas especificamente para os espaços do Museu.
Visitei também a exposição temporária Caminhos Excêntricos. Jovens Artistas da Europa Central, mas, por uma questão de coerência pessoal, não visitei Um Teatro sem Teatro, cuja entrada era paga, como acontece já com outras exposições temporárias do Museu.
Como trivialidades, registam-se os mais de 250.000 visitantes nos seis primeiros meses, daquele que se gaba de ser o único museu aberto todos os dias.
O programa de exposições temporárias para o primeiro semestre de 2008 oferece propostas tentadoras. Quero ver se volto a passar por lá.
Para já, uma pequena amostra, seleccionada, sobretudo, em função da fotogenia decorrente das condições de captação da minha máquina (estupendo, isto de agora se poder tirar fotografias nos museus - o que não me tem impedido de gastar uma pipa de massa em postais).


Pedro Cabrita Reis (Portugal, 1956), Cabinet d'Amateur #2, 2001
MDF, ferro e acrílico sobre vidro, 33 portas standard: 6 x (116 x 229 x 12 cm); 27 x (125 x 248 x 12 cm)



Julian Schnabel (EUA, 1951), Portrait of Jacqueline, 1984
Óleo, cerâmica e cola sobre madeira



Paula Rego (Portugal, 1935), The Barn, 1994
Acrílico sobre tela, 270 x 190 cm



Clemens Stecher (Áustria, 1968), Cold Chain, 2007
Óleo sobre tela, 85 x 70 cm



Aino Kannisto (Finlândia, 1974), Untitled (red kitchen), 2004
C-Print sobre alumínio



Nan Goldin (EUA, 1953), Bruno Smiling at Valérie out of the Shadow, Paris, 2006
Cibachrome print
(sobreposição de sombras e reflexos da sala de exposição)


Na imagem do topo, podem ver-se pormenores das seguintes obras:
John DeAndrea (EUA, 1941), Arden Anderson and Norma Murphy, 1972
Óleo sobre poliéster, grafite, fibra de vidro
Andy Warhol (EUA, 1938 - 1987), Ten Foot Flowers, 1967
Tinta serigráfica sobre polímero sintético sobre tela, 304,8 x 304,8 cm