Foi uma experiência muito marcante e muito enriquecedora. Lembro-me da dificuldade que tive em reter as lágrimas, quando, no final de Abril, senti o comboio arrancar da Gare St Jean, rumo a Portugal (o velho Sud Express, dos emigrantes e dos estudantes com pouco dinheiro).
Foram tempos memoráveis, de independência, socialização e responsabilidade (às vezes, falta dela: na verdade, baixei a média de licenciatura...).
Lembro-me das festas em casa da Claire, do Gabriel e do Bonus, que se estendiam noite dentro, a comer, a beber e a dançar furiosamente, e que só acabavam quando os vizinhos chamavam a polícia. E da festa de despedida das estudantes brasileiras, a Daniela, a Lúcia, a Heloísa e a Maruska, e das bebedeiras monumentais com a caipiroska.
Lembro-me dos serões passados com o Carlos no T0 do Geraldo (os Três Mosqueteiros...), a ouvir Zeca Afonso, Almir Sater e Serge Gainsbourg e a saborear os chás fabulosos do Comptoir Français du Thé (e das insónias subsequentes).
Lembro-me dos jantares de fim-de-semana no Sangria, o restaurante português do bairro de St Michel, o mais barato que conseguíamos arranjar.
E o comércio da rue Sainte Catherine; o Dub Styll, a loja de reggae da Pauline; a livraria Mollat, um mundo de perdição; os filmes de culto no Jean Vigo, e a experiência radical que foi ver o Blade Runner dobrado em francês; os momentos de leitura no Jardin Public; o jazz ao vivo no Le Bœuf sur le Toit; o L'Alligator, o Chez Auguste e o Bar de la Victoire, sempre, o nosso ponto de encontro no final do dia, onde nos aquecíamos com aquela mistela infecta, que parece água de lavar chávenas, a que os franceses chamam café. Nos dias de festa, um Ricard («sinon rien», como dizia o anúncio), ou uma cerveja belga trapista, ou «un demi Adel» (Adelscott, claro).
A homogeneidade arquitectónica da cidade, reconstruída no século XVIII pelos ingleses, que exploraram durante muito tempo a produção vinícola. A geminação com a cidade do Porto compreendia-se até pela acesa polémica de então sobre a construção de uma rede de metro (e pela posterior opção por um metro de superfície).
Os monumentos: o pont de Pierre, a porte Cailhau e o Pey-Berland, a flecha da catedral gótica de Saint André, eram os meus preferidos. A Esplanade des Quinconces surpreendia-me pela vasta superfície intocada pela especulação imobiliária.
O bairro moderno de Mériadeck, com o centro comercial que fechava aos domingos. E a indignação dos franceses quando eu sugeri que, à falta de melhor, os centros comerciais são óptimos locais para ocupar um domingo de chuva: «Então e os empregados das lojas, não têm direito a um dia de descanso?!». E a revolta ainda presente em algumas pessoas pela decisão do Chaban-Delmas, o eterno Presidente da Câmara (de 1947 a 1995), de arrasar todo um bairro antigo para construir aqueles enormes blocos de escritórios. E o medo de que isso se repetisse noutras zonas da cidade.
Os graffiti portugueses nas paredes dos bairros periféricos, e as vozes anónimas: «Michel, anda já para casa!».
E a universidade, claro: enorme, com várias faculdades e uma população estudantil muito numerosa que dava vida à cidade, que ficava deserta aos fins-de-semana.
As aulas de Literatura Medieval de Mme. Notz; a Lexicologia de M. Cocula, com os seus exemplos do francês popular («Comme dirait ma cremière…»); a mitocrítica de M. Dubois; a carne crua da cantina; o temporal que me apanhou mesmo a meio do imenso relvado que separa a Faculdade de Letras da Faculdade de Direito, e que quase me levou pelos ares.
O cheque de 1400 ECUs, o nosso quase exclusivo pecúlio ao desembarcarmos em Bordéus. E a ingenuidade de quem não sabia que, sendo o ECU uma moeda virtual (o antecessor do EURO), o reembolso do cheque demoraria, em qualquer instituição bancária, nunca menos de 15 dias... Não fosse o empréstimo concedido pela contabilidade da Faculdade, até fome teríamos passado.
Lembro-me do embate linguístico de quem estudava francês há 12 anos e que, nas palavras da Claire, «falava como nos livros». Escusado será dizer que essa constatação deu origem a uma sessão de ensino intensivo de calão. E lembro-me da minha alegria quando reparei que conseguia compreender integralmente as conversas dos estudantes que se amontoavam no autocarro F, que nos levava ao campus universitário. E da estranheza que foi aperceber-me de que já sonhava em francês.
A Faculdade de Letras
Ligações de interesse:
> Mairie de Bordeaux; Bordeaux Tourisme
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> Tram et Bus de la CUB: transportes urbanos
> Fac33: as escolhas dos estudantes para passar bem em Bordéus
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