Histórias de Quioto


Quioto (Japão), Agosto de 2004

A ideia de ir ao Japão não foi minha. Confesso que nunca me senti atraída por paragens exóticas e longínquas: sou uma fervorosa admiradora da Europa, de que nunca me canso. Quando a MJ me desafiou para ir ao outro lado do mundo, torci o nariz, mas pensei que era menina para gostar de Tóquio, e pus-lhe essa condição. Ela não ficou muito contente, que para ver néon ia a Times Square, que não era isso que a atraía no Japão, mas lá concedeu: três dias, no máximo. Programámos a viagem para três semanas, que menos que isso não compensava a deslocação, o jet lag e a despesa que íamos fazer. Grande parte desse tempo, queria ela passá-lo no Japão profundo, a fotografar gueixas e a viver experiências milenares, entre ryokan e onsen, templos e cerimónias de chá, sushi e bonsai. Não sei porquê, imaginou que era em Quioto que iria satisfazer toda a sua curiosidade. Já a mim me custava a acreditar que uma cidade tão grande tivesse parado no tempo, mas não lhe disse nada, para não a desanimar.


Pormenor da estação de Quioto

Assim, ao fim de dois dias em Kōyasan, fomos de comboio para Quioto, para uma estadia de seis dias. Desembarcámos numa estação gigantesca e ultra-moderna, com um depāto de que nunca nos cansámos (comprei o meu chapéu japonês, as minhas zōri e peúgas para as ditas, assim que me lembre). Também lá voltávamos, quase diariamente, como todos os estrangeiros de passagem, em busca das caixas ATM internacionais, na Estação Central de Correios, as únicas que aceitavam cartões que não os do sistema japonês.


As minhas zōri

Mesmo em frente à estação, começa uma das maiores ruas da cidade, toda ladeada de edifícios modernos, hotéis, restaurantes e lojas: a Karasuma-dōri. A zona comercial estende-se por um quadriculado de ruas (dōri) paralelas e perpendiculares, que tivemos ocasião de explorar, nos dias que se seguiram: Karasuma, Gojō, Shijō, Kawaramachi,...


Karasuma-dōri, vista da estação; Starbucks na esquina da esquerda (imagem daqui)

Porém, a primeira coisa a fazer foi procurar o nosso alojamento. Desta vez, íamos com as seis noites reservadas, num ryokan, de cujo nome não me lembro, que ficava do outro lado da linha férrea, para as bandas do rio Kamo. Como não conhecíamos nada, e as moradas japonesas são um enigma, apanhámos um táxi: motorista de boné e luvas brancas, resguardos de renda nos bancos, tal e qual como no filme de Sofia Coppola.


Vista superior, a partir de um edifício alto

A atracção da minha amiga pelo Japão tradicional fê-la optar sempre por alojamento em ryokan. Ora, as estalagens desse tipo, para serem boas, são verdadeiramente caras, pelo que ela escolheu o mais barato e central que conseguiu encontrar na Internet, e, depois de uma conversa de surdos ao telefone, ficou convencida de que estava tudo em ordem. E estava: o ryokan favorito dos mochileiros estava à nossa espera, com a velhota que o geria, e não dominava o inglês, e os filhos, que o conseguiam arranhar.
Era um edifício tradicional de dois andares, em madeira, pequeno por fora e labiríntico por dentro. O nosso quarto era minúsculo, com janelas que, por razões estruturais do edifício, nos pediam para não abrirmos, não tinha pequeno-almoço nem casa de banho, que, por sorte, ficava mesmo em frente.
A exiguidade do espaço tornava ainda mais absurdas as regras do calçado, dependentes da divisão entre zonas sujas e limpas: ao entrar no edifício, tínhamos o habitual desnível, com uma estante de onde devíamos tirar uns chinelos, deixando o nosso calçado da rua no mesmo lugar (e passando a noite com o coração nas mãos, sem sabermos o que encontraríamos de manhã); subíamos depois o degrau onde começava a zona interior, limpa, subíamos a escada estreita até ao primeiro andar e percorríamos o corredor, até ao quarto, em tatâmi, à porta do qual devíamos deixar os chinelos e entrar descalças. Para ir à casa de banho, mesmo em frente, calçávamos os chinelos, que trocávamos por outros, à entrada da dita. Esses chinelos (sempre comunitários) serviam para circular na casa de banho, à excepção dos compartimentos sanitários (assinalados "Japanese-style" e "Western-style"), que também tinham chinelos próprios. O banho era noutra divisão, muito concorrida pelos hóspedes estrangeiros: grandes banheiras comunitárias, precedidas por uma zona comum de chuveiros baixos e malgas, que serviam para nos lavarmos, acocoradas num banquinho. A visão da coisa fez-me fugir à procura do cubículo de duche "Western-style", que ficava num recanto do corredor. De regresso ao quarto, tropeçávamos em futons, malas e toda a tralha que tínhamos, porque não havia onde enfiar um pé.
Dois dias depois, ao passar pela rua Karasuma, calhou repararmos nos preços de um Business hotel, e corremos a convencer a velhota de que tínhamos uma emergência, tínhamos de sair de Quioto (para que ela não nos cobrasse a multa de 10 % sobre o valor da reserva), e instalámo-nos no Toyoko Inn Kyoto Gojo-Karasuma, que, como o nome diz, fica na esquina da Gojō com a Karasuma.


Nas imediações do Palácio Imperial

Era um hotel simpático, mais barato que o ryokan da velha, como ficou conhecido, com um quarto pequeno, mas suficiente, funcional e ocidental, com camas, casa de banho, tábua de passar a ferro, secador de cabelo, cafeteira eléctrica, para preparar o chá, e tudo aquilo que nos poderia fazer falta, mas também sem pequeno-almoço incluído.
De manhã, saíamos, como se tornou rotina nos seis dias que passámos em Quioto, e íamos até ao único café ocidental que encontrámos, onde uma jovem japonesa simpática nos servia café ou chá preto, torradas (em vez de triângulos de arroz cozido), ovos e bacon, acompanhados por cool jazz. Não havia leite, que, juntamente com a fruta, foi o que mais falta me fez, naquelas três semanas, mas eu vingava-me nas pequenas embalagens de natas para café. Tornámo-nos clientes habituais, ao ponto de percebermos que a menina simpática só devia lavar o avental uma vez por semana. Bom, a alternativa era o Starbucks, em frente à estação ferroviária, mas era muito caro.
Por acaso, o jantar do primeiro dia também foi uma aventura: saímos do ryokan, à procura de um restaurante, mas demos por nós num bar de karaoke, de onde fugimos, antes que nos fizessem cantar. Depois de muito andarmos, e termos percebido que tínhamos deixado passar a hora do jantar, acabámos num McDonald's.




Pormenor do Jardim Botânico e da exposição de bonsai

Finalmente, passámos bem em Quioto, sobretudo depois de mais bem instaladas e de nos sabermos orientar, na cidade e em relação à alimentação. Demos grandes passeios, no centro e na periferia, visitámos vários templos, os jardins do Palácio Imperial e o Jardim Botânico.
A minha amiga, percebi-o, andava um tanto desanimada com o lado moderno da cidade, francamente contrastante com as expectativas dela. Mas, um dia, fomos conhecer o bairro antigo de Gion, assistir a uma cerimónia de chá e jantar num dos restaurantes debruçados sobre o rio, o que lá lhe melhorou a disposição. De qualquer forma, concordámos que já chegava de Quioto e embarcámos no shinkansen, rumo a Tóquio.






Passeio por Gion

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