Manual de Sobrevivência no Louvre

Como ver a Mona Lisa: toda a técnica em 4 fases

1 - Entrada na sala: Requer uma pré-determinação particular, uma motivação longamente amadurecida, mas no essencial não apresenta qualquer dificuldade.



2 - Aproximação ao local da pintura: A célebre máxima "a esperança é a última coisa a morrer" não surte aqui qualquer efeito. É mesmo preciso ser um bocadinho maluco. Contudo, no essencial, esta fase também não apresenta qualquer dificuldade e podemos aproximar-nos sem problemas.



3 - Posicionamento: Nesta fase toda a obstinação já não chega. É a altura em que se leva cotoveladas, empurrões e em casos extremos alguns pisões. Aqui devemos tornar-nos leves e maleáveis e, considerando sempre um horizonte virtual, devemos manter-nos o mais verticalmente possível e deslocarmo-nos com o restante magote de gente, sem contrariar a corrente de sentido aleatório que existe em frente à pintura.
Com a maior discrição, em suma, sem perder a cabeça, fazemos como toda a gente e colocamo-nos de frente para o local da pintura.



4 - Ver a pintura: Neste momento é necessária toda a atenção e muita paciência. Mantendo a mesma posição face ao local da pintura, devemos concentrar-nos no entanto nas pessoas que estão à nossa volta, sobretudo se forem asiáticos, e particularmente japoneses que estejam por perto. É mesmo necessário anteciparmos os seus movimentos e as suas intenções, sendo aqui que reside a emoção e mesmo toda a beleza desta nossa iniciativa. O alvo da nossa atenção deverá ser, estatisticamente, um japonês de meia idade, que se apresenta muitíssimo apressado, por vezes mesmo a correr com a restante família atrás (mulher e dois filhos - um com aspecto ocidentalizado e outro com cabelo à punk). Este japonês deverá trazer na mão direita um objecto prismático, um pouco maior que a própria mão, cor de alumínio ou preto baço. Devemos fazer todos os possíveis e os impossíveis para nos colocarmos perto deste homem.
ET VOILÀ!! A enigmática Mona Lisa!!



Nota: Para ver outras peças neste museu, poderá ser necessário utilizar técnicas totalmente diferentes. Por agora deixamos apenas o exemplo da Vénus de Milo, para a qual devemos levar um assistente (na figura, em segundo plano, a pessoa que está por baixo).



Texto e imagens de Rui Cambraia

Estes romanos são loucos!

Um dos aspectos mais fascinantes das viagens é o contacto enriquecedor com as diferenças culturais, com a consequente relativização de tudo aquilo a que estamos habituados e a construção de novas representações cognitivas de nós mesmos e dos outros. Porém, certas diferenças culturais teimam em colidir com hábitos e rotinas automatizadas. Entre elas, encontram-se os hábitos higiénicos.
Ninguém perde muito tempo a pensar naquilo que faz na casa de banho. É essencialmente um espaço de intimidade e introspecção, onde cada qual pode, inclusivamente, entregar-se a devaneios e actividades paralelas, como ler, cantar e planificar o dia-a-dia. O conceito de casa de banho é, para cada pessoa, um dado adquirido na sua vida.
Ao longo da minha, tive oportunidade de me confrontar com muitas variantes culturais do dito conceito, desde a horta da tia da terra até à sanita ao canto da cozinha da prima de um velho pátio alfacinha. Somos um país de contrastes, é verdade, mas, nas últimas décadas, os hábitos de higiene e as leis que regem a construção civil têm provocado uma progressiva normalização. Embates sérios, tenho-os tido lá fora.
O primeiro tive-o em França, quando, numa casa particular, pedi para ir à casa de banho e me deram uma toalha e dirigiram-me à "salle de bain" propriamente dita, porque, como em todas as casas antigas, o "wc" ficava num compartimento próprio, geralmente contíguo. Três meses vivi eu em Bordéus, na pensão do velho Trou Normand, ao estilo "wc sur le palier", a passear rolos de papel higiénico no corredor...
Daí para a frente, tenho-me divertido a constatar as diferenças e, rapariga precavida, a testar o equipamento previamente. Já encontrei um pouco de tudo, dentro das variantes locais do conceito ocidental.
Às vezes, vou prevenida. Antes de ir para a Escandinávia, tinha lido duas descrições curiosas, uma sobre os bidés finlandeses:

«No quarto de banho é frequente encontrar um objecto não identificado. Próximo da retrete encontra uma espécie de chuveiro que substitui o nosso bidé. O aparelho está ligado ao lavatório e só conseguirá pô-lo a funcionar se abrir a torneira da bacia» (Mariana Oliveira, "Finlândia" in Público, 02/08/03, suplemento Fugas, p. 3).
A outra, do meu amigo Vítor Santos, nas suas saudosas Crónicas de Copenhaga (2002, ms., capítulo 3), sobre os duches lá em cima, e aquele hábito terrível que faz qualquer pessoa sentir-se passar num ápice de Cinderela a Gata Borralheira:
«As casas de banho são normalmente pequenas e não têm banheira, correndo a água do duche directamente para um ralo no chão. E há sempre em todas as casas de banho um instrumento desses com que se limpam em Portugal os vidros dos carros nas estações de serviço ou que usam os profissionais das limpezas para limpar janelas (como se chama tal coisa?), com que se limpa o chão depois de tomar duche.»
Nenhum mortal consegue perceber por que é que aquelas almas, tão ricas e evoluídas, ainda não integraram conceitos tão simples como uma base de chuveiro e uma cortina, já para não falar de uma cabine de duche... O resultado prático é ter de lavar a casa de banho depois de a utilizar, caso contrário a mesma fica impraticável.
São coisas pequeninas, mas que fazem perder a paciência e um tempo precioso (só dão vontade de rir à distância).
Por exemplo, em 3 semanas na América do Norte, nunca encontrei duas torneiras que funcionassem da mesma maneira: umas para a direita, outras para a esquerda, umas para cima, outras para baixo, para fora, para dentro,... Uma manhã, em Toronto, estive a pontos de desistir de tomar banho, depois de uma luta inglória com o manípulo.
Este ano, no País de Gales, perdi cerca de meia hora à procura do interruptor do duche eléctrico, até me aperceber de um cordelinho suspenso a meio do tecto da casa de banho. Resumindo, de cada vez que queria ligar ou desligar a corrente de água tinha de pôr o braço de fora da cortina e, consequentemente, molhar o chão todo.
Já para não falar das diferenças das loiças sanitárias. Sabiam que nos Estados Unidos, nas casas de banho públicas, há algumas sanitas maiores, para gente muito grande? Apercebi-me disso a primeira vez que, desde a infância, tive dificuldade em lá chegar...
Mas o meu último fascínio são as casas de banho japonesas. E não falo já das sanitas "Japanese style", cuidadosamente evitadas, umas pequenas bacias no chão, para onde, de cócoras, tem de se fazer pontaria. Nem das grandes banheiras para banhos comuns ou dos longos toucadores das casas de banho públicas, onde as coquetes japonesas retocam a maquilhagem (se não for aí, é no metro, nos cafés, em qualquer lado). Deliciosa é toda a tecnologia ao serviço dos hábitos de higiene ocidentalizantes, os secadores de mãos futuristas, ou, mais mecânicos, os tubos de abastecimento de água, que, colocados sobre a tampa do autoclismo, permitem o aproveitamento da água para lavar as mãos, antes de se escoar, por um buraquinho, para dentro do reservatório.
Mas verdadeiramente divinos são os tampos de sanita TOTO. Impõem respeito, é como estarmos sentados aos comandos de uma nave espacial: nunca sabemos qual dos botões nos vai ejectar para o espaço. As versões bilingues são mais tranquilizantes, mas roubam toda a emoção da descoberta de mais uma função insuspeita: spray, bidé, secador, aquecimento do tampo, aquecimento da água, oscilação do jacto, desodorização ou, cúmulo do requinte, som de autoclismo, para maior privacidade! Encontram aqui descrição detalhada (em inglês) e ilustrada do funcionamento do equipamento.

Praga, 13/08/02

«Vamos para Praga, sempre há-de estar melhor do que aqui». Estávamos, havia quase hora e meia, resguardadas no portal de uma igreja, no Parque da Cidade de Budapeste, a ver a chuva torrencial fazer fumo e rios no empedrado do chão. Metemo-nos ao caminho, debaixo dos impermeáveis e com água até aos tornozelos, rumo à estação de Nyugati pu. (pu. é, para felicidade dos estrangeiros, o diminutivo de pályaudvar).
Eu esperava ansiosamente por aquela viagem no 374 Pannonia, o comboio que parte de Bucareste e atravessa toda a Europa Central, até Praga. O nome deixava-me imaginar algo de Transiberiano, de Expresso do Oriente. Mas a chuva persistente roubou parte do encanto da viagem. O resto dele foi destruído pelas várias incursões dos guardas fronteiriços. Controle de passaportes à saída da Hungria, à entrada na Eslováquia, à saída da Eslováquia, à entrada na República Checa. Os eslovacos, em particular, eram uns brutos, estilo soviético da velha guarda. As camas dos beliches eram confortáveis, mas as paragens, as invasões fiscais e a intensa humidade não nos deixaram pregar olho.



Desembarcámos na Estação Central de Praga (Hlavní Nádraží), ainda antes das 6 horas do dia 12 de Agosto, uma manhã cinzenta, chuvosa e desagradável. Arrastámos a bagagem pelas ruas desertas, até ao Hotel Imperial, na Na Poříčí, perto da Náměstí Republiky (Praça da República), e fomos resguardar-nos no abrigo de uma paragem de autocarros, enquanto fazíamos tempo para a abertura dos cafés e para o check-in no hotel.
O tempo não estava para passeios, nem para nada. Decidimos fazer uma visita guiada, em autocarro fechado, para ficarmos com uma panorâmica geral da cidade, e fomos descansar.
O dia seguinte amanheceu estranho. Toda a madrugada fora marcada pela chuva, pelas sirenes persistentes e pelos helicópteros que sobrevoavam a cidade. Tomámos o pequeno almoço no café do hotel, o Kavarna Imperial, no meio de uma belíssima decoração Arte Nova, e saímos à aventura.
A chuva tinha abrandado e havia muita gente na rua, mas o ambiente não era acolhedor. Parecia que tínhamos aterrado no meio de uma guerra: as sirenes não paravam, uma voz séria fazia-se ouvir, em checo, pelos altifalantes espalhados pelo centro da cidade e havia polícias e soldados por todo o lado. Estranhámos, sobretudo, o afã dos habitantes, que, ajudados por soldados, enchiam sacos de areia e isolavam portas e janelas com espuma de poliuretano. Abordámos um rapaz com cara de estudante e de falar inglês e perguntámos-lhe o que é que dizia a voz nos altifalantes. Ele respondeu-nos, muito calmamente, que era a protecção civil a exortar a população a evacuar a zona baixa, porque as comportas das barragens tinham sido abertas e esperava-se que o rio galgasse as margens e inundasse todo o centro da cidade. Mas faltavam ainda umas duas horas, ou mais. Começámos então a reparar em pormenores como as fotocópias de mapas da cidade afixadas por todo o lado, com as zonas críticas assinaladas, e as lojas que estavam já todas a fechar. Dirigimo-nos até ao Vltava, que corria forte e escuro. Nas margens, o exército, com camiões e tanques de guerra, montava barreiras de aço em locais críticos.



Pelas 10 da manhã, a Ana Isabel quis voltar ao hotel, para buscar um casaco, porque o tempo estava a arrefecer. Quando lá chegámos, era a confusão: tinham recebido ordens para evacuar o hotel. Fomos arrumar as nossas coisas e descemos com as bagagens para o café, de onde tinham já desaparecido mesas e cadeiras, e aí esperámos, sentadas no chão, juntamente com os outros hóspedes, pelo transporte que nos havia de levar a um centro de evacuação. Era tudo malta nova, porque aquele era um hotel jovem, tipo pousada de juventude. Esperámos horas. Pela uma e meia, trouxeram-nos cestos de pão e croissants, para entretermos a fome.
Cansadas de esperar, e depois de nos darem instruções e um mapa, eu e a Ana Isabel resolvemos ir a pé até ao Gymnázium Prof. Jana Patočky, que ficava alguns quarteirões acima. Era uma escola secundária, fechada para as férias de Verão, onde estavam a ser recolhidos os habitantes do centro e os hóspedes dos hotéis menos estrelados. O exército veio distribuir sacos-cama, cobertores e camas de campanha e a protecção civil trouxe mais sandes, sumos e fruta. Pernoitámos, com um grupo de 20 espanhóis, numa sala de aula, de onde tinham tirado mesas e cadeiras, e lavámo-nos com Dodots nos lavatórios das casas de banho. Não conseguimos dormir, é claro, quer porque os espanhóis ressonavam imenso, quer porque as sirenes, os helicópteros e a chuva não davam tréguas.
A manhã tinha cara de dia seguinte, e ninguém sabia muito bem o que ia encontrar lá fora. Os checos não largavam a televisão, que transmitia ininterruptamente notícias e imagens da catástrofe que assolava toda a Europa Central. Alguém falou nas maiores cheias dos últimos 500 anos.



Ao longo da manhã, foram chegando mais pessoas, sobretudo idosos, com o que conseguiram tirar de casa, à pressa, as gaiolas dos passarinhos e os cachorros. Apareceram também os jornalistas, para as entrevistas de circunstância. Fiquei admirada com os checos: muito sérios, muito dignos, muito sofridos, mas sem a lamechice das reportagens portuguesas de catástrofes. Impressionaram-me muito, assim como a organização da Protecção Civil, do exército e dos populares (único senão: a falta de informação numa língua estrangeira acessível para a grande quantidade de turistas que se encontravam na cidade). Recordo, particularmente, o encarregado do nosso Centro de Evacuação: a simpatia, a dedicação e o poder de liderança. Tentei imaginar o resultado de uma situação daquelas em Portugal: os gritos, a histeria, a desorganização, os inquéritos para apuramento de responsabilidades, o caos.
No final da manhã, pedimos autorização para ir dar uma volta, para apanhar ar e ver o que se passava lá fora. Grande parte da zona baixa estava inundada, as últimas pessoas eram evacuadas de barco, os patos e os cisnes do rio nadavam felizes e contentes pelas ruas. O nosso hotel tinha a cave inundada e toda a zona estava sem electricidade e sem gás.
Nessa tarde, fomos recolocadas na colina de Strahov, numa residência universitária, onde partilhámos com um casal de jovens suecos um pequeno apartamento de 2 quartos, casa de banho e kitchenette. As instalações eram óptimas, mas as deslocações estavam um tanto limitadas: não havia metro e parte da cidade estava interditada. Mas, pasme-se, todos os transportes disponíveis eram gratuitos!
Deixámos Praga 3 dias depois, no meio de um clima de solidariedade e de reconstrução: bombeava-se água dos andares baixos, limpavam-se as ruas, o comércio da zona antiga ia reabrindo e o tempo melhorava, lentamente.



Ligações de interesse:
> Český rozhlas - Povodně: página em checo, mas com muitas ligações para vídeos e fotos das cheias.
> Záplavy 2002: álbuns de fotos das cheias.