Praga, 13/08/02

«Vamos para Praga, sempre há-de estar melhor do que aqui». Estávamos, havia quase hora e meia, resguardadas no portal de uma igreja, no Parque da Cidade de Budapeste, a ver a chuva torrencial fazer fumo e rios no empedrado do chão. Metemo-nos ao caminho, debaixo dos impermeáveis e com água até aos tornozelos, rumo à estação de Nyugati pu. (pu. é, para felicidade dos estrangeiros, o diminutivo de pályaudvar).
Eu esperava ansiosamente por aquela viagem no 374 Pannonia, o comboio que parte de Bucareste e atravessa toda a Europa Central, até Praga. O nome deixava-me imaginar algo de Transiberiano, de Expresso do Oriente. Mas a chuva persistente roubou parte do encanto da viagem. O resto dele foi destruído pelas várias incursões dos guardas fronteiriços. Controle de passaportes à saída da Hungria, à entrada na Eslováquia, à saída da Eslováquia, à entrada na República Checa. Os eslovacos, em particular, eram uns brutos, estilo soviético da velha guarda. As camas dos beliches eram confortáveis, mas as paragens, as invasões fiscais e a intensa humidade não nos deixaram pregar olho.



Desembarcámos na Estação Central de Praga (Hlavní Nádraží), ainda antes das 6 horas do dia 12 de Agosto, uma manhã cinzenta, chuvosa e desagradável. Arrastámos a bagagem pelas ruas desertas, até ao Hotel Imperial, na Na Poříčí, perto da Náměstí Republiky (Praça da República), e fomos resguardar-nos no abrigo de uma paragem de autocarros, enquanto fazíamos tempo para a abertura dos cafés e para o check-in no hotel.
O tempo não estava para passeios, nem para nada. Decidimos fazer uma visita guiada, em autocarro fechado, para ficarmos com uma panorâmica geral da cidade, e fomos descansar.
O dia seguinte amanheceu estranho. Toda a madrugada fora marcada pela chuva, pelas sirenes persistentes e pelos helicópteros que sobrevoavam a cidade. Tomámos o pequeno almoço no café do hotel, o Kavarna Imperial, no meio de uma belíssima decoração Arte Nova, e saímos à aventura.
A chuva tinha abrandado e havia muita gente na rua, mas o ambiente não era acolhedor. Parecia que tínhamos aterrado no meio de uma guerra: as sirenes não paravam, uma voz séria fazia-se ouvir, em checo, pelos altifalantes espalhados pelo centro da cidade e havia polícias e soldados por todo o lado. Estranhámos, sobretudo, o afã dos habitantes, que, ajudados por soldados, enchiam sacos de areia e isolavam portas e janelas com espuma de poliuretano. Abordámos um rapaz com cara de estudante e de falar inglês e perguntámos-lhe o que é que dizia a voz nos altifalantes. Ele respondeu-nos, muito calmamente, que era a protecção civil a exortar a população a evacuar a zona baixa, porque as comportas das barragens tinham sido abertas e esperava-se que o rio galgasse as margens e inundasse todo o centro da cidade. Mas faltavam ainda umas duas horas, ou mais. Começámos então a reparar em pormenores como as fotocópias de mapas da cidade afixadas por todo o lado, com as zonas críticas assinaladas, e as lojas que estavam já todas a fechar. Dirigimo-nos até ao Vltava, que corria forte e escuro. Nas margens, o exército, com camiões e tanques de guerra, montava barreiras de aço em locais críticos.



Pelas 10 da manhã, a Ana Isabel quis voltar ao hotel, para buscar um casaco, porque o tempo estava a arrefecer. Quando lá chegámos, era a confusão: tinham recebido ordens para evacuar o hotel. Fomos arrumar as nossas coisas e descemos com as bagagens para o café, de onde tinham já desaparecido mesas e cadeiras, e aí esperámos, sentadas no chão, juntamente com os outros hóspedes, pelo transporte que nos havia de levar a um centro de evacuação. Era tudo malta nova, porque aquele era um hotel jovem, tipo pousada de juventude. Esperámos horas. Pela uma e meia, trouxeram-nos cestos de pão e croissants, para entretermos a fome.
Cansadas de esperar, e depois de nos darem instruções e um mapa, eu e a Ana Isabel resolvemos ir a pé até ao Gymnázium Prof. Jana Patočky, que ficava alguns quarteirões acima. Era uma escola secundária, fechada para as férias de Verão, onde estavam a ser recolhidos os habitantes do centro e os hóspedes dos hotéis menos estrelados. O exército veio distribuir sacos-cama, cobertores e camas de campanha e a protecção civil trouxe mais sandes, sumos e fruta. Pernoitámos, com um grupo de 20 espanhóis, numa sala de aula, de onde tinham tirado mesas e cadeiras, e lavámo-nos com Dodots nos lavatórios das casas de banho. Não conseguimos dormir, é claro, quer porque os espanhóis ressonavam imenso, quer porque as sirenes, os helicópteros e a chuva não davam tréguas.
A manhã tinha cara de dia seguinte, e ninguém sabia muito bem o que ia encontrar lá fora. Os checos não largavam a televisão, que transmitia ininterruptamente notícias e imagens da catástrofe que assolava toda a Europa Central. Alguém falou nas maiores cheias dos últimos 500 anos.



Ao longo da manhã, foram chegando mais pessoas, sobretudo idosos, com o que conseguiram tirar de casa, à pressa, as gaiolas dos passarinhos e os cachorros. Apareceram também os jornalistas, para as entrevistas de circunstância. Fiquei admirada com os checos: muito sérios, muito dignos, muito sofridos, mas sem a lamechice das reportagens portuguesas de catástrofes. Impressionaram-me muito, assim como a organização da Protecção Civil, do exército e dos populares (único senão: a falta de informação numa língua estrangeira acessível para a grande quantidade de turistas que se encontravam na cidade). Recordo, particularmente, o encarregado do nosso Centro de Evacuação: a simpatia, a dedicação e o poder de liderança. Tentei imaginar o resultado de uma situação daquelas em Portugal: os gritos, a histeria, a desorganização, os inquéritos para apuramento de responsabilidades, o caos.
No final da manhã, pedimos autorização para ir dar uma volta, para apanhar ar e ver o que se passava lá fora. Grande parte da zona baixa estava inundada, as últimas pessoas eram evacuadas de barco, os patos e os cisnes do rio nadavam felizes e contentes pelas ruas. O nosso hotel tinha a cave inundada e toda a zona estava sem electricidade e sem gás.
Nessa tarde, fomos recolocadas na colina de Strahov, numa residência universitária, onde partilhámos com um casal de jovens suecos um pequeno apartamento de 2 quartos, casa de banho e kitchenette. As instalações eram óptimas, mas as deslocações estavam um tanto limitadas: não havia metro e parte da cidade estava interditada. Mas, pasme-se, todos os transportes disponíveis eram gratuitos!
Deixámos Praga 3 dias depois, no meio de um clima de solidariedade e de reconstrução: bombeava-se água dos andares baixos, limpavam-se as ruas, o comércio da zona antiga ia reabrindo e o tempo melhorava, lentamente.



Ligações de interesse:
> Český rozhlas - Povodně: página em checo, mas com muitas ligações para vídeos e fotos das cheias.
> Záplavy 2002: álbuns de fotos das cheias.

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