Kafka











Praga, 1919.

Imagens de Steven Soderbergh, Kafka, 1991.

Blimunda



Nove anos procurou Blimunda. Começou por contar as estações, depois perdeu-lhes o sentido. Nos primeiros tempos calculava as léguas que andava por dia, quatro, cinco, às vezes seis, mas depois confundiram-se-lhe os números, não tardou que o espaço e o tempo deixassem de ter significado, tudo se media em manhã, tarde, noite, chuva, soalheira, granizo, névoa e nevoeiro, caminho bom, caminho mau, encosta de subir, encosta de descer, planície, montanha, praia do mar, ribeira de rios, e rostos, milhares e milhares de rostos, rostos sem número que os dissesse, quantas vezes mais os que em Mafra se tinham juntado, e de entre os rostos, os das mulheres para as perguntas, os dos homens para ver se neles estava a resposta, e destes nem os muito novos nem os muito velhos, alguém de quarenta e cinco anos quando o deixámos além no Monte Junto, quando subiu aos ares, para sabermos a idade que vai tendo basta acrescentar-lhe um ano de cada vez, por cada mês tantas rugas, por cada dia tantos cabelos brancos. Quantas vezes imaginou Blimunda que estando sentada na praça duma vila, a pedir esmola, um homem se aproximaria e em lugar de dinheiro ou pão lhe estenderia um gancho de ferro, e ela meteria a mão ao alforge e de lá tiraria um espigão da mesma forja, sinal da sua constância e guarda, Assim te encontro, Blimunda, Assim te encontro, Baltasar, Por onde foi que andaste em todos estes anos, que casos e misérias te aconteceram, Diz-me primeiramente de ti, tu é que estiveste perdido, Vou-te contar, e ficariam falando até ao fim do tempo.
Milhares de léguas andou Blimunda, quase sempre descalça. A sola dos seus pés tornou-se espessa, fendida como uma cortiça. Portugal inteiro esteve debaixo destes passos, algumas vezes atravessou a raia de Espanha porque não via no chão qualquer risco a separar a terra de lá da terra de cá, só ouvia falar outra língua, e voltava para trás. Em dois anos, foi das praias e das arribas do oceano à fronteira, depois recomeçou a procurar por outros lugares, por outros caminhos, e andando e buscando veio a descobrir como é pequeno este país onde nasceu, Já aqui estive, já aqui passei, e dava com rostos que reconhecia, Não se lembra de mim, chamavam-me Voadora, Ah, bem me lembro, então achou o homem que procurava, O meu homem, Sim, esse, Não achei, Ai pobrezinha, Ele não terá aparecido por aqui depois de eu ter passado, Não, não apareceu, nem nunca ouvi falar dele por estes arredores, Então cá vou, até um dia, Boa viagem, Se o encontrar.

José Saramago

In: Memorial do Convento, Lisboa, Editorial Caminho, 1982 (8ª ed., 1984, pp. 355-356).

Plitvička jezera

De há uns tempos para cá, andava quase a arrepender-me de ter ido à Noruega, ou pelo menos de já lá ter ido. Começou a fazer sentido para mim aquela máxima que diz «ver x e morrer». Há experiências que não devemos ter cedo de mais, sob pena de vivermos permanentemente insatisfeitos, a resmungar comparações com glórias passadas. A Noruega foi tudo aquilo que eu esperava que fosse: um bálsamo para a alma. Aquela conjugação de montanhas, florestas, glaciares e fiordes foi a paisagem mais bonita que eu alguma vez vi. Daí para a frente, tudo se tornou pequenino, insatisfatório, e eu passei a desconfiar de todas as ofertas, por mais apelativas que fossem.



Foi com um pé atrás que fui conhecer os lagos Plitvice. Tinham dois pontos a favor: a classificação como património da Humanidade e a localização numa das zonas mais perigosas da Croácia, bem no meio do território da Krajina, onde começou a guerra da independência, em 1991 (que, como todas as guerras dos tempos modernos, ninguém sabe quando acabará, se tivermos em conta a quantidade de minas que os sérvios por lá deixaram espalhadas).



Cerca de 30 mil hectares de montanhas e florestas, 16 lagos turquesa-irreal, dezenas de quedas de água, libelinhas azul-eléctrico, cardumes de peixes a nadarem numa água límpida, que oferece o espectáculo de fundos de vegetação petrificada, enfim, convenceram-me. Nem o calor nem os turistas me demoveram de lá passar uma tarde e um dia inteirinhos.



O parque nacional está muito bem organizado, com equipamentos novos e os percursos quase todos reconstruídos. Propõe várias caminhadas, de duração e dificuldade variáveis, com trechos opcionais de barco e comboio, incluídos no bilhete de entrada.



Os lagos Plitvice são bem servidos por autocarros, que operam as ligações de Zagreb com o sul do país. O parque gere os 4 hotéis e o parque de campismo, mas a toda a volta (vimos depois) há uma enorme oferta de sobe (zimmer-rooms-camere) particulares, como por toda a Croácia. Quando pretendemos fazer as reservas, poucos dias antes da partida, já só havia disponibilidade no parque de campismo. Ficámos num bungalow simpático, num parque também ele novinho e bem equipado, com ligação diária, de autocarro, ao parque nacional, a cerca de 7 km de distância. Bem medidos, que no primeiro dia, inconscientes, resolvemos fazer a pé, sob um sol tórrido, por curvas intermináveis de alcatrão escaldante. O parque de campismo tem outro aliciante: uma praia fluvial, que aproveitámos devidamente nos finais de tarde.
E pronto, o Sognefjord já não está sozinho no meu quadro de honra, e mantém-se viva a minha esperança de continuar a encontrar o espanto da Natureza, por essas curvas do mundo fora.

Dobrodošli u Zagreb

E foi assim, sem mais nem menos, um convite irrecusável e, em pouco mais de uma semana, desembarcava em Zagreb. Aparentemente, não foi uma escolha muito original: havia pessoas de todos os cantos do mundo a desaguarem em força no Adriático. O dia 31 de Julho foi um dia histórico - para os croatas, que anunciavam, em parangonas, o record absoluto de 1,000.000 de turistas no Adriático, e para mim, que consegui descodificar a minha primeira notícia em croata. No dia seguinte, a contabilidade do primeiro fim-de-semana de Agosto adicionava mais 300 mil turistas. Todos a banhos, claro, que em Zagreb nem se dava por eles.
A capital da Croácia é uma cidade interior, com todas as características das cidades da Europa central um dia dominadas pelos Habsburgos, mas sem o esplendor de Viena, Praga ou Budapeste. É muito diferente das cidades costeiras, onde abundam os vestígios romanos, onde se respira um ambiente mediterrânico e onde o calor, os turistas e a inflação são elevados a um expoente absurdo.


O mercado de Dolac

Não é uma cidade muito grande, tem cerca de 770 mil habitantes, um centro histórico pequeno, de características medievais, uma zona nova, de amplas avenidas de traçado quadricular, concebida entre o século XIX e o início do século XX, e uma periferia moderna, que só vislumbrei à distância, onde predomina a verticalidade residencial dos anos 60, em concepção comunista.


O Museu Mimara

Só lá ficámos um domingo, a passeios. Uma brochura gratuita, fornecida pelo turismo local, propõe dois percursos pedestres (de 60 e 90 minutos), comentados detalhadamente, para se ficar com uma panorâmica geral da cidade.
Dedicámos um momento cultural ao Museu Mimara, com cerca de 3750 obras de arte, de diferentes épocas, doadas pelo coleccionador Ante Topić Mimara, visitámos igrejas e miradouros e passeámos bastante pelas ruas, a aproveitar o tempo agradável.


Uma torre da fortificação medieval, em Kaptol

Em Zagreb, contactámos com a língua croata e com uma das suas peculiaridades: sendo uma língua de casos (como o alemão, por exemplo), tem diferentes terminações para os nomes, segundo a sua função na frase. O curioso é que isso acontece não só com os nomes comuns, mas também com os nomes próprios, o que resulta, por um lado, em alguns equívocos entre a leitura dos mapas e a das placas com os nomes das ruas e, por outro lado, em algumas situações caricatas. Um prémio a quem decifrar a personalidade homenageada pelas muitas praças (trg) e ruas (ulica) Ivana Pavla II, que hoje florescem pelo país...


Estátua equestre de ban Josip Jelačić, líder croata da revolta contra os húngaros (1848),
na praça central, com o mesmo nome (Trg bana Josipa Jelačića)

As minhas imagens\Marraquexe 1992


Um passeio de mobylette pela periferia da cidade


Comércio na periferia


A entrada da Menara


Petit taxi


A feira de Jamaâ El Fna


Túmulos Saadianos


À saída da feira numa aldeia do Atlas


Uma vista do Atlas Superior