Split e o imperador

Foi Diocleciano quem primeiro descobriu esta baía de águas transparentes, no final do século III, e aí resolveu construir um enorme palácio (com cerca de 30 mil m2), para o que mandou vir pedra branca da ilha de Brač e duas esfinges do Egipto. E foi aí que viveu, depois da abdicação.


Reconstituição do palácio de Diocleciano

No século VII, as invasões bárbaras, de avaros e eslavos, devastaram a região, forçando os habitantes locais a fugir. Os sobreviventes da destruída cidade de Salona procuraram abrigo, uns nas ilhas, outros dentro das muralhas do palácio abandonado. As edificações romanas foram transformadas, de modo a dar origem a uma malha urbana mais adaptada às necessidades da população medieval. E assim nasceu a cidade de Split.


O Peristilo, à noite

O mausoléu do imperador viu-se convertido em catedral cristã, o templo de Júpiter em baptistério; as caves em lixeira; as esfinges egípcias mudaram de sítio; galerias de colunas foram cortadas, paredes deslocadas, janelas fechadas, portas abertas; um capitel foi transformado em mesa; ergueram-se torres, rasgaram-se ruas; construíram-se hotéis, abriram-se lojas e restaurantes, cibercafés e bares; recebeu-se o McDonald's, o Hugo Boss e a Benetton. O resultado final é hoje uma Babel, labiríntica e fascinante.


A Praça Nacional, por cima das cabeças dos turistas

Ao longo do tempo, a cidade esteve, sucessivamente, sob o domínio croata, húngaro, veneziano, francês, austro-húngaro, jugoslavo e novamente croata, cresceu para fora da fortificação, ganhou um porto, modernizou-se. É hoje a segunda maior cidade da Croácia e a maior da Dalmácia, com 200 mil habitantes. Em 1979, o centro histórico foi classificado como património da humanidade, passando a atrair hordas de turistas.


Galerija Ivana Meštrovića

Split foi também a localização escolhida por Ivan Meštrović para aí construir o palácio da sua família. Ivan Meštrović (1883-1962) é um dos nomes mais importantes da arte croata. Escultor, estudou em Viena e Paris (consta que terá sido um dos discípulos favoritos de Rodin), trabalhou e leccionou nos Estados Unidos e construiu muitos monumentos na sua pátria natal. Zagreb acolhe o seu atelier e museu; o palacete de Split foi convertido numa galeria, que alberga igualmente um importante espólio. Ambos os espaços são geridos pela Fundação Ivan Meštrović.


Ivan Meštrović, Job, 1946

Split é uma cidade inesquecível, pela inusitada mistura de épocas e culturas, pelo fascínio visual, pela curiosidade que suscitam todas aquelas ruelas labirínticas, e até pelo kitsch das togas dos turistas na Noite de Diocleciano.


Entrada no porto de Split

As cidades e o nome. 4.


Split

Clarice, cidade gloriosa, tem uma história atribulada. Várias vezes decaiu e refloresceu, tendo sempre a primeira Clarice como modelo inigualável de todo o esplendor, em comparação com o qual o estado presente da cidade não deixa de suscitar novos suspiros a cada volver das estrelas.
Nos séculos de degradação, a cidade, esvaziada das pestilências, baixando de estatura devido aos desmoronamentos de travejamentos e cornijas e aos aluimentos de terras, enferrujada e entupida por incúria ou falta dos responsáveis pela manutenção, repovoava-se lentamente ao reemergirem das caves e tocas hordas de sobreviventes que como ratos pululavam movidos pela ânsia de vasculhar e roer, e até de rebuscar e remendar, como pássaros que fazem ninho. Agarravam-se a tudo o que se pudesse retirar donde estava e pôr noutro lugar para servir para outro uso: os cortinados de brocado acabavam a fazer de lençóis; nas urnas cinerárias de mármore plantavam manjericos; as grelhas de ferro forjado arrancadas das janelas dos gineceus serviam para grelhar carne de gato sobre fogueiras de lenha talhada. Montada com as peças da Clarice imprestável, tomava forma uma Clarice da sobrevivência, toda tugúrios e pardieiros, esgotos infectos, coelheiras. No entanto, do antigo esplendor de Clarice não se perdera quase nada, estava tudo ali, simplesmente disposto numa ordem diferente mas não menos apropriada do que outrora às exigências dos habitantes.
Aos tempos de indigência sucediam-se épocas mais alegres: uma Clarice borboleta sumptuosa nascia da Clarice crisálida miserável; a nova abundância fazia a cidade transbordar de materiais edifícios objectos novos; afluía nova gente vinda de fora; já nada nem ninguém tinha alguma coisa a ver com a Clarice ou as Clarices de antes; e quanto mais a nova cidade se instalava triunfalmente no lugar e no nome da primeira Clarice, mais se dava conta de se afastar daquela, de destruí-la não menos rapidamente do que os ratos e o bolor: apesar do orgulho do novo fausto, no fundo do coração sentia-se estranha, incongruente, usurpadora.
E então os resquícios do primeiro esplendor que se tinham salvado adaptando-se a necessidades mais obscuras eram novamente deslocados, guardados sob campânulas de vidro, encerrados em vitrinas, colocados em almofadões de veludo, e já não porque podiam ainda servir para qualquer coisa, mas porque através deles se desejava recompor uma cidade de que já ninguém sabia nada.
Outras deteriorações e outros vigores se seguiram em Clarice. As populações e os costumes mudaram muitas vezes mais; restam o nome, a localização, e os objectos mais difíceis de quebrar. Cada nova Clarice, compacta como um corpo vivo com os seus odores e a sua respiração, ostenta como uma jóia o que resta das antigas Clarices fragmentárias e já mortas. Não se sabe quando estiveram os capitéis coríntios no alto das suas colunas: só se recorda de um deles que por muitos anos numa capoeira manteve a cesta onde as galinhas punham os ovos, e dali passou para o Museu dos Capitéis, em fila com os outros exemplares da colecção. Já se perdeu a ordem da sucessão das várias eras; que houve uma primeira Clarice é crença bem difundida, mas não há provas que o demonstrem; os capitéis poderiam ter estado nas capoeiras antes de irem parar aos templos, as urnas de mármore poderiam ter sido semeadas com manjerico antes de o serem com ossos de defuntos. De certeza só se sabe uma coisa: um certo número de objectos desloca-se num certo espaço, ora submerso por uma quantidade de objectos novos, ora consumando-se sem serem substituídos; a regra é misturarem-se todas as vezes e experimentar juntá-los de novo. Talvez Clarice haja sempre sido apenas uma barafunda de bugigangas partidas, mal combinadas, fora de uso.

Texto de Italo Calvino, Le città invisibili, Torino, Einaudi, 1972
(tradução portuguesa de José Colaço Barreiros, As cidades invisíveis, Lisboa, Editorial Teorema, 2003, pp. 108-110).

O homem do leme



Sozinho na noite
Um barco ruma para onde vai?
Uma luz no escuro
Brilha a direito, ofusca as demais

E mais que uma onda, mais que uma maré
Tentaram prendê-lo, impor-lhe uma fé
Mas vogando à vontade, rompendo a saudade
Vai quem já nada teme, vai o homem do leme

E uma vontade de rir
Nasce no fundo do ser
E uma vontade de ir
Correr o mundo e partir
A vida é sempre a perder
No fundo do mar
Jazem os outros, os que lá ficaram
Em dias cinzentos
Descanso eterno lá encontraram
E mais que uma onda, mais que uma maré
Tentaram prendê-lo, impor-lhe uma fé
Mas vogando à vontade, rompendo a saudade
Vai quem já nada teme, vai o homem do leme

E uma vontade de rir
Nasce no fundo do ser
E uma vontade de ir
Correr o mundo e partir
A vida é sempre a perder
No fundo horizonte
Sopra o murmúrio para onde vai?
No fundo do tempo
Foge o futuro, é tarde de mais
E uma vontade de rir
Nasce no fundo do ser
E uma vontade de ir
Correr o mundo e partir
A vida é sempre a perder


Letra de Tim, música de Xutos & Pontapés. Xutos & Pontapés, Cerco, LP Dança do Som, 1985.
Imagens de Gore Verbinski, Pirates of the Caribbean: The Curse of the Black Pearl, 2003.


PS.: Parabéns, Dr. Zilch!

Maria Papa-Léguas



Quando era pequena, coleccionava selos. Entre muitas coisas, é verdade, coleccionava selos. Nunca tive grandes pretensões filatélicas, nem nunca me interessaram grandemente os exemplares novinhos, a brilharem a tipografia. Pelo contrário, delirava com os carimbos de tinta desbotada, virava os selos por todos os lados a tentar reconstituir letras e números em falta, a decifrar locais e datas. Fascinavam-me as viagens que aqueles pedacinhos de papel tinham feito, por países e cidades de que só tinha ouvido falar, ou nem isso. Completava a pesquisa com enciclopédias e atlas, tentava compreender épocas, guerras e reinados, metrópoles e colónias, países que tinham mudado de nome, nomes que já não correspondiam a nenhum país, países divididos, reunificados, nascidos e desaparecidos, heróis e ex-heróis, faunas e floras, moedas e alfabetos.
Há já muitos anos que os meus classificadores estão abandonados numa prateleira, à espera de tempo e de renascido interesse - muito antes de me ter entusiasmado a coleccionar euros (agora, ou alargam a zona euro, ou as minhas moedas acabam convertidas em géneros...). Depois, descobri outro passatempo, mais refinado: coleccionar capitais europeias. Melhor: coleccionar países, continentes, mares e oceanos.
Não é muito original: percebi que se tornou uma brincadeira de adultos, um jogo para as horas mortas de voo (quando não há comida) e para as esperas no aeroporto. «Eu já tenho 35, E tu?» «Ainda só tenho 23...». E desenrola-se a lista, como se se trocassem cromos: «Tenho, tenho, tenho, não tenho...».
Como qualquer jogo, precisa de regras: escalas em aeroportos não contam, porque aeroporto é terra de ninguém; travessias terrestres, fluviais, marítimas ou aéreas, sem tocar directamente o solo, também não valem; o contacto com os habitantes e a cultura locais somam pontos; menos de meio dia num país, só visto caso a caso, e sempre dependente da alínea anterior.
E que Deus nos mantenha o espírito sempre jovem!...


Holanda: Agosto 2003
> Amesterdão: 5h30m



Bélgica: Agosto 2004
> Bruxelas: 3h00m



Bósnia-Herzegovina: Julho 2005
> Neum: 0h20m


Ilustração de Laura Costa, para Costa Barreto & Laura Costa, Maria Papa-Léguas, Editorial Infantil Majora, s/d, p. 4.