A neve e eu
Toda a vida ouvi a minha mãe contar histórias dos Invernos da sua infância em Trás-os-Montes, naqueles domínios perdidos para lá do Marão, onde o ano se resumia a 9 meses de Inverno e 3 de Inferno. O vento barbeiro, a roupa dos estendais que partia ao ser dobrada, o pingo de água que amanhecia sólido na boca da torneira. E a neve. A neve que se agarrava ao fundo de pau das chancas, que os miúdos descalçavam, para não caírem no caminho para a escola. A neve que atiravam em bolas uns aos outros.
O meu pai também referiu algumas vezes as brincadeiras daquele Inverno longínquo em que nevou em Lisboa. E o resto eram os filmes americanos, dreaming of a white Christmas.
Delirei quando um dia os meus tios me convidaram para ir com eles e com os meus primos à Serra da Estrela. Porém, o meu pai recusou categoricamente, argumentando que as crianças haviam de ir, sim, mas com os paizinhos (no fundo, nunca confiou na condução do meu tio). Chorei muito. E nunca fomos.
Creio que foi em 1992, já adulta, que fui pela primeira vez à Serra da Estrela, passar um dia nas férias da Páscoa. A neve já não era muita, mas pulei como uma criança, deslumbrada com aquela fofura branca, e fartei-me de escorregar sentada em sacos de plástico.
Serra da Estrela, 1992
Quando em 1997 fui trabalhar para a Guarda, o que mais me entusiasmou foi a perspectiva de ver nevar, de viver realmente a neve. Prometeram-me temporais, dias de isolamento, gás e água a gelar nos canos, uma cidade branca, como no ano anterior. Em vez disso, suportei três meses consecutivos de nevoeiro cinzento, chuva mole, vento cortante e frio glaciar. Sentia-me um chouriço, com tanta roupa sobreposta, e ainda a sensação de alfinetes espetados nos dedos e nas orelhas, por baixo das luvas e do garruço. De cada vez que chegava à escola, a esfregar as mãos, e dizia: «Hoje está frio, hem?», respondiam-me, invariavelmente: «Isto não é nada, o pior ainda está para vir!». Mas nunca veio. Aqueles dois anos que lá passei foram premiados com Invernos relativamente amenos.
O meu momento de glória chegou quando, num final de tarde, subia do campus do IPG para as Lameirinhas, onde morava. Estava muito frio e vento, como de costume, e o ar era trespassado por pequenos mosquitos persistentes, que eu ia enxotando da cara. Mas eles teimavam em não me largar, agarravam-se à roupa e às luvas pretas. Ao passar junto a um candeeiro, vi contra a luz uma imensidão de pequeninos flocos brancos que caíam de cima. Só então percebi que estava a nevar.
Passei o final do dia numa grande agitação, a correr a toda a hora para a janela, para ver o desenrolar da situação. E a neve pegou. De manhã, ao levantar a persiana (que, geralmente, custava a abrir e a fechar, colada pelo gelo), dei um grito: estava tudo branco, a rua, o relvado do estádio municipal, os telhados, as árvores. À porta da rua, fiquei paralisada, sem saber o que fazer, como andar por cima daquilo (já um dia tinha tido uma má experiência, quando saí de casa com o meu passo acelerado, sem perceber que o chão estava coberto por uma camada vítrea de gelo). E foi pé ante pé que desci até à escola, fascinada com a paisagem, a tirar fotografias (que acabaram por ficar queimadas, nem uma para amostra). Pelo meio-dia, abriu o sol e foram umas duas horas até a neve derreter toda. E acabou-se.
Daí para a frente, só uma nevezita de vez em quando, sempre aos fins-de-semana, pelo que eu já só me apercebia de uns farrapitos sujos à beira da estrada, quando voltava na segunda-feira.
Quando em 1999 saí da Guarda, soube que a neve voltou a atacar em força e percebi que, no fundo, havia era uma grande incompatibilidade entre as duas, falta de empatia. Imaginei que, mesmo que planeasse uma viagem à Lapónia em Dezembro, haveria de encontrar o Pai Natal a saudar-me em t-shirt e sandálias. A neve não queria nada comigo.
Hoje nevou na Amadora. Nas minhas flores, na minha rua, no meu carro, no jardim do meu bairro, no meu cabelo, nas minhas luvas pretas. Acho que fizemos as pazes. Estou feliz.