O paradoxo Kodak

No passado dia 22 de Março, Marc Batard esteve na minha escola para uma conferência-debate, acompanhada pela apresentação das curtas-metragens Solitude verticale, de Gilles Perret e Serge Worreth, e L'homme qui revient de haut, de Gilles Perret.
Marc Batard, montanhista francês, conferencista, escritor e pintor. O ponto alto do seu currículo como montanhista foi, em 1990, a subida do Evereste (8848 metros), a solo e sem oxigénio, em 22 horas e 29 minutos - recorde que, nestas condições, ainda ninguém conseguiu bater. Em 1995, criou a associação En passant par la montagne, com o intuito de apoiar e motivar jovens com incapacidades e inadaptações várias. Abandonou o montanhismo em 1999.
É uma figura franzina, aparentemente calma, com uma história de vida muito complexa. Hoje, diz, encontra a paz na pintura, em Paris, longe das alturas que o chamaram, muito jovem, em 1974.
Interessou-me o homem, fascinaram-me as imagens, mas retive particularmente o debate. Lembro-me de uma pessoa vivamente interessada, que punha questões sucessivas, e que, a dada altura, perguntou a Batard o que é que sentiu quando chegou pela primeira vez ao cimo do Evereste. Eu não pude deixar de rir - passaram-me pela cabeça todas as chegadas aos muitos sítios por onde já passei, o frenesi de resgatar as malas, encontrar um transporte e chegar ao alojamento. Isto no melhor dos casos, quando a reserva está feita, se não ainda é maior a angústia de ter de encontrar onde passar a noite e, sobretudo, onde pousar a tralha. E perceber que horas são; quais os costumes alimentares, por muito que contrariem o nosso metabolismo; convencer o nosso corpo de que agora as regras são outras, por muito que isso lhe custe a ele e a nós.
Uma vez, em Oslo, depois da saga da chegada e do jantar, esperava na rua, enquanto a Ana Isabel, numa cabina, telefonava para casa. Lembro-me de ter feito um esforço para me consciencializar de que estava longe, e de tudo o que isso implicava, mas só consegui realmente sentir que era tarde, que estava cansada e que o dia seguinte ia ser longo.
Marc Batard respondeu que, na verdade, com o cansaço e a escassez de oxigénio, não há muito que sentir. Talvez apenas a apreensão pela descida que está à espera. Lembrou-me de quando, em criança, enjoava nos transportes. Por muito curta que fosse a viagem, e por mais que a minha mãe me dissesse: «Já falta pouco», eu não podia deixar de pensar que, quanto menos faltasse para o destino, maior era a distância para o regresso. Mas Batard disse ainda algo curioso: «Apesar de tudo, gosto de saber que lá estive, fico feliz por lá ter estado».
Alguém perguntou o que é que leva uma pessoa a arriscar a vida para subir montanhas. O montanhista respondeu uma coisa fascinante, a única que eu teria sabido responder: «A procura da beleza, da imagem do belo».
Acho que andamos todos a montar grandes álbuns de fotografias: nas imagens paradas há harmonia, as paisagens são bonitas, as pessoas felizes, não se sente o calor, nem o cansaço, nem os mosquitos, nem os transtornos gastrointestinais. É por isso que eu digo sempre aos meus alunos que a fotografia é metonímica.
As imagens são o mais importante que guardo, a par da tal memória de lá ter estado. Deve ser por isso que o aeroporto onde mais me emociona aterrar é o de Lisboa. Tudo o resto, é para mais tarde recordar.


O Evereste visto de Kala Patthar, no Nepal (imagem de Wikipedia)

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