Outra vista da cidade



Tinha pressa, nos últimos instantes. Atravessou a cidade, que está construída num vale, seguindo para o lado oposto ao cemitério, e começou a subir a zona nova do colégio e seminário até acabarem os prédios, são uns vinte e cinco minutos a pé.
Antes de se enfiar no mato, passou pelo pátio interno do colégio, uma espécie de coliseu romano dos lacraus. (...)
O coveiro sentou-se entre as mimosas com o saco de insecticida 605 Forte, o seu ferrão. Dali via até quase ao Rossio, a colina a subir ao Castelo, à Sé e Paço do Bispo, às chaminés da fábrica da rolha. Muito mais longe, atrás do Penhasco, para sul, as searas na planície e os montes azuis. Nas suas costas, a subida rochosa para a serra e para Espanha. As mimosas são acácias de um verde doentio na maior parte do ano, mas na Primavera dão realmente belos cachos. A cidade tem um perfil inconfundível na zona alta, como a dentadura duma chave. Ninguém conseguia fazer uma chave igual, e também ninguém queria.



Rui Cardoso Martins ([2006] 2007). E se eu gostasse muito de morrer. 3ª edição, Lisboa: Publicações Dom Quixote, pp. 24-25.

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