Casa do Poeta José Régio v2



O Poeta Régio chega para ser professor do liceu e fica superdeprimido não com o que isto é, mas com o que isto não é, nem tem, nem representa, e pensa matar-se.
Cidade onde então sofria coisas que terei pudor de contar seja a quem for.
Anos mais tarde, habituou-se e, diz até quem o conheceu, mais ao seu feitio austero e carrancudo, que nem queria outra coisa e odiava as grandes cidades.
A base dessa mudança foi a casa.
A ideia dele para um bom lar seria um casarão enorme que pudesse encher de crucifixos. Encontrou-o, alugou-o e encheu-o de crucifixos. Uma antiga pensão de pedra grossa, voltada para o cemitério e colada a umas cavalariças malcheirosas da GNR. Aos sábados e domingos saía com motorista e corria os campos, de quinta em quinta, de monte em monte, azuis na distância, como ele dizia, convencendo velhotes a vender velharias religiosas por dois tostões. Salvou vários tesouros artísticos religiosos de alimentarem a lareira dum camponês qualquer, no Inverno.
Sol na vidraça, escuro nos recantos. Casa tosca e bela à qual quis como se fora feita para morar nela.
Na verdade, a casa até arrepia de crucifixos. Crucifixos de madeira, de barro, de metal, cristos elegantes, toscos, esquisitos, serenos, agonizantes, zangados por serem o Messias, descrentes na ressurreição, optimistas quanto a isso, cristos antigos, recentes, europeus, asiáticos, cristos às centenas, há mesmo um de marfim branco com rubis a fazer as gotinhas de sangue. Paga-se bilhete à entrada, menos quem está isento.
Da bela janela da casa, via passar os funerais, o cemitério é mesmo em frente, os dedos gigantes dos ciprestes apontando o céu, um poético cinema de varanda.

Texto de Rui Cardoso Martins ([2006] 2007). E se eu gostasse muito de morrer. 3ª edição, Lisboa: Publicações Dom Quixote, p. 199.

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