Em viagem









Ilustrações do meu primeiro livro em papel, que foi também o primeiro de vários da Anita com que familiares e amigos me foram presenteando, religiosamente, no Natal e no aniversário, durante a primeira metade dos anos 70.
Antes, foram os livros de pano. O que mais me marcou foi o da história da Carochinha, toda em quadras de versos de 7 sílabas, com rima cruzada no segundo e no quarto, que eu tinha já decorado integralmente aos 2 anos. Não consigo perceber porquê: aquela história moralista causou-me pesadelos durante muito tempo, assim como muito me fez chorar, solidária com a personagem principal, a sua triste sina e merecido castigo. Um exemplo acabado da linha dura da concepção clássica de literatura para a infância.
Depois, foram os livros dos Cinco e de tudo o que eu consegui apanhar de Enid Blyton. De todos, os meus favoritos eram os dos quatro primos e do cão Tim, que corriam terras de Sua Majestade a resolver mistérios (ah!, as férias na Cornualha!...).
No entanto, aquele período entre os 3 e os 6 anos foi mesmo ocupado pela menina belga que se fartava de fazer coisas divertidas com o cão Pantufa: ele era circo, ele era teatro, compras, viagens, jardinagem, baby-sitting, ballet, culinária, equitação, limpezas, festas e trabalhos da escola. Era sempre perfeita, bonita, organizada, popular, modesta, obediente e pronta a aprender com as lições da vida. Um modelo de virtudes. Acompanhou épocas e modas, mudou de penteado e de amigos, teve gatos, tartarugas, primos, tios e uma preceptora inglesa. O seu universo familiar mudou tanto como o visual da mãe e o seu próprio: foram um reflexo das mudanças sociais na Europa a partir dos anos 50. Alguns álbuns antigos tiveram de ser refeitos, por terem sido rotulados de politicamente incorrectos, racistas e sexistas, e hoje a Anita é tão olhada de soslaio, pelos pais responsáveis, como a Barbie.
Mas mais de 50 anos de edições, mais de 50 títulos e mais de 50 milhões de exemplares vendidos em vários países fazem pensar que alguma coisa a Anita deve ter para ter cativado e continuar a cativar crianças de tantas gerações. Para mim, o mérito é inteirinho das ilustrações de Marcel Marlier, com o seu realismo ingénuo, os seus pormenores mimosos e os seus tons pastel.
Quer se queira quer não, há certos recursos estéticos a que as crianças são mais sensíveis. Lembro-me de quando, no pós-25 de Abril, Vasco Granja nos tentava aliciar para a animação dos países de Leste. Nós aceitávamos, só por sabermos que no fim do programa nos brindaria com mais uma criação de Ted Avery.
O meu amigo Francisco, quando era criança (sim, porque agora tem 7 anos), mostrou-me uma vez a sua colecção de filmes, entre os quais uma qualquer história tradicional, com uns bonecos muito simpáticos na caixa, que, segundo ele, não era verdadeira. Eu tentei explicar-lhe, com muita calma e muita sabedoria, que a mesma história pode ter muitas versões diferentes, consoante quem a conta, e que nenhuma tem de ter mais valor que outra, que os estúdios Disney, enfim, não detêm o monopólio do imaginário colectivo. O meu amigo Francisco ouviu-me atentamente e, no final, retorquiu: «Sim, Teresa, a minha também é muito bonita, mas não é a verdadeira».
Até hoje, vá-se lá saber porquê, nunca me consegui desfazer dos meus livros da Anita, que vão saindo, de vez em quando, da arrecadação, direitinhos para o scanner. Talvez ainda voltem a passar por aqui.

Ilustrações de Marcel Marlier, para Gilbert Delahaye & Marcel Marlier, Martine en bateau, Casterman, 1961
(edição portuguesa: Anita em viagem, Lisboa, Verbo Infantil, s/d, pp. 3, 5, 6 e 19).

1 comentário:

Susana Rodrigues disse...

Bolas! Agora também tenho de ir buscar os meus à arrecadação. De qualquer modo TERIAM de fazer parte da colecção de livros infantis que hei-de mostrar/ler/dar a ler aos meus (futuros) filhos.
E com posts maravilhosos como este descobri que ando a comentar a minha ex-professora de Morfologia, que me implantou o vírus de verificar ortografia e ficar furiosa com cada erro encontrado :)