Onde é que eu estava há 50 anos?
Amadora, 1 de Junho de 1974 (fotografia de Alfredo Cunha)
Estava aqui.
Nesse dia, o grande Alfredo Cunha, que era então um jovem fotojornalista, meu vizinho, captou esta imagem, à entrada da minha rua. No seu livro 25 de Abril de 1974, quinta-feira, legendou-a assim:
É numa chaimite e agora já na Grande Lisboa que, 37 dias depois, os filhos dos capitães de Abril hão-de comemorar o seu primeiro Dia Mundial. Em «A Mosca», suplemento semanal do vespertino Diário de Lisboa, a Guidinha [Luís de Sttau Monteiro] escreve a sua habitual «redacção», hoje intitulada «Até que enfim». (p. 211)Foi o primeiro de muitos, este Dia Mundial da Criança. Lembro-me que, após a Comissão de Moradores do Bairro Novo ter aberto à comunidade a mata da Companhia das Águas, era aí que se fazia a festa, com jogos, desporto, pintura, música e muita animação.
Em 1974, foram os soldados que apareceram, com chaimites, e convidaram as crianças que brincavam na rua a subirem e a acompanhá-los num cortejo pela (então) freguesia, até às Portas de Benfica. Uma vizinha, jovem e tomada pelo espírito de liberdade, passou para as mãos dos soldados a filha dela e os filhos da minha mãe. Como éramos dos mais novos, não ficámos do lado de fora, de onde poderíamos cair, mas fomos enfiados dentro do veículo blindado, que ia atulhado como uma lata de sardinhas. Depois, só me recordo de que estava quente e escuro, íamos apertados e nem víamos o caminho. Os soldados tinham-nos dito para irmos gritando "Unidade! Unidade!", mas o meu irmão, que ainda nem tinha três anos, entoava, animado "Humidade! Humidade!".
Não posso dizer que me tenha divertido muito, ou respirado os ares de liberdade, sobretudo desde que me apercebi de que o passeio estava para durar, que não tinha pedido autorização à minha mãe e que a democracia ainda não tinha entrado em nossa casa. Para dizer a verdade, fui a maior parte do tempo apreensiva, a imaginar o reencontro materno-filial.
De facto, não foi um momento de celebração: a vizinha, de entusiasmada que estava, tinha-se esquecido de avisar a minha mãe, que andava pela vizinhança, desesperada, à procura das crianças que tinha deixado a brincar em frente à porta. A alegria de nos ver foi totalmente ofuscada pela fúria e pela visão dos nossos sapatos todos rasgados de lado, por um rebordo metálico no rodapé do carro. Não recordo grandes pormenores das consequências da nossa imprudência, apenas o argumento de que "és a mais velha, devias ter juízo!". Tinha 6 anos.
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