O mais difícil, ao chegar a Bordéus no início de Janeiro de 1990, foi arranjar alojamento. As residências universitárias estavam lotadas, desde o início do ano lectivo, e os quartos e os apartamentos mais aceitáveis estavam já ocupados. Foi necessário recorrer a uma agência imobiliária, e mesmo assim as escolhas foram muito limitadas.
Acabei por alugar um quarto numa pensão, na rue Pelleport, perto da gare St Jean. Chamava-se Le Trou Normand. Era um edifício antigo, de dois andares, como os que se viam por toda a cidade. Os quartos eram uns 10 e ficavam no andar superior, por cima de um bar, mais ou menos tasca, tipo bistrot. Cada quarto estava equipado com aquecimento (indispensável, porque o Inverno foi rigoroso) e casa de banho (lavatório e duche). O WC, colectivo, ficava no corredor.
Era um sítio curioso, onde se passavam coisas estranhíssimas.
Às vezes, era a polícia que aparecia, à procura ora da jovem do quarto ao lado, que tinha fugido com o namorado, um tipo esquisito, que lhe batia (ouvia-se tudo, através daquelas paredes...); ora, creio eu, de todo o género de objectos, trazidos por pessoas muito estranhas, e que o patrão, um bretão enorme e manhoso, passava a outras pessoas ainda mais estranhas.
Quando lá cheguei, fez-me o discurso do ambiente familiar e decente: que não gostava muito de aceitar raparigas, porque já tinha tido uma má experiência, mas que abria uma excepção, porque eu lhe parecia uma boa menina. De qualquer forma, deixou bem claro que era estritamente interdito levar rapazes para o quarto. E fazer barulho durante o dia, porque a maioria dos inquilinos trabalhava de noite.
A mulher do patrão (a 3ª, por acaso), 30 anos mais nova do que ele, morria de ciúmes de mim.
A filha de ambos era uma criança de uns oito ou nove anos, muito branca, muito calada e de aspecto doentio.
O cão, Aldo, era preto, enorme, feroz e odiava-me. Uma vez atirou-se a mim, pensava eu que para me lamber a cara. Pelo ar aterrorizado do dono, que voou pelo bar, para o agarrar, percebi que o assunto podia ter-se tornado sério. Contaram-me depois que, dias antes, o bom do Aldo tinha mandado um homem para o hospital. Nunca mais voltei a descer as escadas sem perguntar, alto e bom som, se o cão estava preso. E confirmava, com os meus próprios olhos, se ele estava atrás do balcão, sempre virado na minha direcção, com um olhar assassino.
Um dia, descobri que andava, inadvertidamente, a partilhar um camembert com um rato, que, uma manhã, ainda a esfregar os olhos, vi atravessar o meu quarto a toda a velocidade. Quando me queixei aos senhorios, a reacção não podia ter sido pior: «Aqui não há ratos! Pensas que estás em Portugal? Este é um país do 1º mundo! Temos água quente e tudo!», disse ela. E, revoltada, ainda insinuou que eu devia andar a tomar coisas esquisitas, que devia ter visto era o cão, que era o único animal permitido no estabelecimento. Ele sorriu, sugeriu que devia ser uma barata grande, o que não me deixou muito mais descansada. Para me tranquilizar, foi pôr um isco envenenado no meu quarto. No dia seguinte, apareceu um ratinho morto à entrada.
Nunca percebi o escarcéu em torno do bicho: nada mais natural, em edifícios antigos, de estrutura de madeira, do que a fauna indesejada. Mas a patroa deve ter pensado que eu estava a criticar a higiene doméstica, que, a avaliar pelo asseio dos donos, não devia ser muita. Por acaso, lembro-me de ter ficado contratualizada a limpeza semanal do meu quarto e de ela, um dia, me ter dito que, como eu era muito limpinha e arrumadinha, a intervenção dela era desnecessária. Além de que não devia achar muito próprio ser criada de uma portuguesa.
Não me lembro do nome dela, ele chamava-se Jacques. Ela chamava-me Têrrêsá, ele chamava-me Márriá, porque dizia que é o nome de todas as portuguesas. E chegou a oferecer-me trabalho como mulher-a-dias, entre outras propostas estranhíssimas.
Da janela do meu quarto, a igreja do Sacré-Cœur