Quando, todos os anos, recebo os estudantes estrangeiros que vêm assistir às minhas aulas de Língua Portuguesa, ou quando chegam notícias dos meus alunos portugueses nas universidades europeias, não consigo deixar de recordar a minha própria experiência como estudante ERASMUS, entre Janeiro e Abril de 1990, em Bordéus.
Foi uma experiência muito marcante e muito enriquecedora. Lembro-me da dificuldade que tive em reter as lágrimas, quando, no final de Abril, senti o comboio arrancar da Gare St Jean, rumo a Portugal (o velho Sud Express, dos emigrantes e dos estudantes com pouco dinheiro).
Foram tempos memoráveis, de independência, socialização e responsabilidade (às vezes, falta dela: na verdade, baixei a média de licenciatura...).
Lembro-me das festas em casa da Claire, do Gabriel e do Bonus, que se estendiam noite dentro, a comer, a beber e a dançar furiosamente, e que só acabavam quando os vizinhos chamavam a polícia. E da festa de despedida das estudantes brasileiras, a Daniela, a Lúcia, a Heloísa e a Maruska, e das bebedeiras monumentais com a caipiroska.
Lembro-me dos serões passados com o Carlos no T0 do Geraldo (os Três Mosqueteiros...), a ouvir Zeca Afonso, Almir Sater e Serge Gainsbourg e a saborear os chás fabulosos do Comptoir Français du Thé (e das insónias subsequentes).
Lembro-me dos jantares de fim-de-semana no Sangria, o restaurante português do bairro de St Michel, o mais barato que conseguíamos arranjar.
E o comércio da rue Sainte Catherine; o Dub Styll, a loja de reggae da Pauline; a livraria Mollat, um mundo de perdição; os filmes de culto no Jean Vigo, e a experiência radical que foi ver o Blade Runner dobrado em francês; os momentos de leitura no Jardin Public; o jazz ao vivo no Le Bœuf sur le Toit; o L'Alligator, o Chez Auguste e o Bar de la Victoire, sempre, o nosso ponto de encontro no final do dia, onde nos aquecíamos com aquela mistela infecta, que parece água de lavar chávenas, a que os franceses chamam café. Nos dias de festa, um Ricard («sinon rien», como dizia o anúncio), ou uma cerveja belga trapista, ou «un demi Adel» (Adelscott, claro).
A homogeneidade arquitectónica da cidade, reconstruída no século XVIII pelos ingleses, que exploraram durante muito tempo a produção vinícola. A geminação com a cidade do Porto compreendia-se até pela acesa polémica de então sobre a construção de uma rede de metro (e pela posterior opção por um metro de superfície).
Os monumentos: o pont de Pierre, a porte Cailhau e o Pey-Berland, a flecha da catedral gótica de Saint André, eram os meus preferidos. A Esplanade des Quinconces surpreendia-me pela vasta superfície intocada pela especulação imobiliária.
O bairro moderno de Mériadeck, com o centro comercial que fechava aos domingos. E a indignação dos franceses quando eu sugeri que, à falta de melhor, os centros comerciais são óptimos locais para ocupar um domingo de chuva: «Então e os empregados das lojas, não têm direito a um dia de descanso?!». E a revolta ainda presente em algumas pessoas pela decisão do Chaban-Delmas, o eterno Presidente da Câmara (de 1947 a 1995), de arrasar todo um bairro antigo para construir aqueles enormes blocos de escritórios. E o medo de que isso se repetisse noutras zonas da cidade.
Os graffiti portugueses nas paredes dos bairros periféricos, e as vozes anónimas: «Michel, anda já para casa!».
E a universidade, claro: enorme, com várias faculdades e uma população estudantil muito numerosa que dava vida à cidade, que ficava deserta aos fins-de-semana.
As aulas de Literatura Medieval de Mme. Notz; a Lexicologia de M. Cocula, com os seus exemplos do francês popular («Comme dirait ma cremière…»); a mitocrítica de M. Dubois; a carne crua da cantina; o temporal que me apanhou mesmo a meio do imenso relvado que separa a Faculdade de Letras da Faculdade de Direito, e que quase me levou pelos ares.
O cheque de 1400 ECUs, o nosso quase exclusivo pecúlio ao desembarcarmos em Bordéus. E a ingenuidade de quem não sabia que, sendo o ECU uma moeda virtual (o antecessor do EURO), o reembolso do cheque demoraria, em qualquer instituição bancária, nunca menos de 15 dias... Não fosse o empréstimo concedido pela contabilidade da Faculdade, até fome teríamos passado.
Lembro-me do embate linguístico de quem estudava francês há 12 anos e que, nas palavras da Claire, «falava como nos livros». Escusado será dizer que essa constatação deu origem a uma sessão de ensino intensivo de calão. E lembro-me da minha alegria quando reparei que conseguia compreender integralmente as conversas dos estudantes que se amontoavam no autocarro F, que nos levava ao campus universitário. E da estranheza que foi aperceber-me de que já sonhava em francês.
A Faculdade de Letras
Ligações de interesse:
> Mairie de Bordeaux; Bordeaux Tourisme
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