Big in Japan

Estive no Japão em Agosto de 2004, mas há um ano que interrompi o relato da viagem. Andava de dia para dia para o retomar, mas outras coisas se intrometiam nas minhas boas intenções. Até que, subitamente, o Japão entrou de novo na minha vida, com todos os sabores, os aromas, as cores e os sons que recordo. Obra do Tripping Out of my Space, que, nos meses de Setembro, Outubro e Novembro últimos, me deliciou com uma excelente reportagem, com textos divertidos e muitas imagens.
Talvez seja desta que o Japão volte a passar por aqui. Para já, fica o itinerário da viagem, antes que eu me esqueça.



Agosto de 2004, eu e a minha amiga Maria João, três semanas para conhecermos tudo o que pudéssemos sobre o Japão.
Adoptámos Quioto como o centro nevrálgico das nossas deslocações, pelo que rumámos ao aeroporto de Kansai, via Paris, porque a Air France, devido à parceria com a Japan Airlines, oferecia as tarifas mais vantajosas. Lisboa - Paris, uns percalços no confuso aeroporto de Charles de Gaulle e cerca de 12 horas de voo até Ósaca, sobrevoando todo o norte da Europa, a Rússia e a Sibéria, até ao Mar do Japão. A viagem fez-se bem: como em todos os voos de longo curso, entretiveram-nos com comida e ainda com uns pequenos computadores individuais, fixados às costas do banco da frente, que ofereciam jogos de paciência, informações sobre o voo, música, cinema e séries televisivas.
Do aeroporto seguimos, de comboio, para Ósaca, onde apanhámos novo comboio para Koyasan. Ficámos dois dias nas montanhas e partimos, igualmente de comboio, para Quioto. Foram seis dias para descobrir o Japão tradicional, por entre as largas avenidas de Quioto, entre um ryokan e um business hotel, department stores e templos budistas.
E rumámos a Tóquio, de shinkansen, o comboio rápido que, ao contrário do que me diziam em Portugal, não paira sobre os carris - é só muito rápido, aerodinâmico e caro. Contávamos ficar dois dias em Tóquio, só para dar uma vista de olhos. Ao fim dos dois dias, fizemos o check out do ryokan e instalámo-nos num business hotel barato, na periferia, onde nos deixámos ficar mais uns dois dias.
Entretanto pensámos que não podíamos ficar eternamente em Tóquio, que havia um país inteiro à nossa espera, e fomos à descoberta das águas termais dos onsen das montanhas de Hakone. Quatro dias de passeio por entre a chuva e resolvemos ir até ao mar. Um dia em Atami chegou para nos despertar saudades de Tóquio. E lá voltámos, mais dois dias, para o nosso business hotel em Kamata.
Dois dias antes do voo de regresso, fomos de shinkansen para Ósaca, conhecer a cidade capital da Yakuza, a máfia japonesa, e do Bunraku, o teatro de marionetas.



Links tenho muitos, aqui, e algumas reflexões dispersas, aqui e ali.

A day in the life of Africa

28 de Fevereiro de 2002
Um dia, um continente, 100 fotógrafos


Anne Day / Cabo Verde


Seamus Conlan / Namíbia, Otjekwa


George Steinmetz / Namíbia, Windhoek


Benoit Gysembergh / São Tomé e Príncipe, São Tomé


Sebastião Salgado / Somália, Jamaame


Peter Turnley / Eritreia, Asmara


Chris Rainier / Sudão, Ruínas de Meroe


Bruno Barbey / Marrocos, Marraquexe

A day in the life of Africa:
> Página oficial do projecto
> Fotos

Marthiya de Abdel Hamid

Não sei
Se tornarei a ver
As caravanas
Que de madrugada
Atravessam o deserto
Em frente
Às ruínas de Palmira

Ou
As azenhas milenares
De Hama
A chiar de esforço
Quando elevam
A água do Ononte
Até ao aqueduto
Que encima a cidade

Ou
A paisagem
Aos pés do monte Kasyun
Coberta de estrelas
Que caíram
E se fizeram
Pura luz esparsa:
A cidade de Damasco

Não sei
Se tornarei
A fazer a viagem nocturna
No comboio de Bagdad:
Alepo, Nínive,
Tikrit...

E se outra vez ainda
Poderei erguer os olhos
E ver a beleza de Nahila
Nos limites da sua açoteia.

Já ouvi dentro de mim
Um trovão
Fender-me a alma.

Para a unir de novo
Não sei o que terei de enfrentar.



Poema de Alberto Pimenta, Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta, Lisboa, &etc, 2005, pp. 53-54.
Imagem de Wikipedia.

Tricks of the light



Costumo dizer que a Noruega me ofereceu as paisagens mais bonitas que tive oportunidade de apreciar, mas a verdade é que a Finlândia não se ficou muito atrás. O impacto que os fiordes provocam pela imponência da verticalidade tem um justo correlato no efeito estético da extensão plana dos lagos. Aquela imensidão de água, conjugada com os efeitos da luz setentrional, oferece imagens de uma grande beleza, que sempre inspiraram os artistas finlandeses.





Pintura de Hugo Simberg (1873-1917)
Spring Evening during Ice Break (Kevätilta jäänlähdön aikaan), 1897
Óleo sobre tela, 27 x 37 cm
Helsínquia, Ateneum

O vagabundo do Dharma

Não aguento o chilreio dos pássaros
Neste momento estou deitado na minha cabana

As cerejas são de um vermelho vivo e luminoso
Os salgueiros direitos suas flores lãzudas

A alvorada traz na boca os picos azul-verdes
As claras nuvens banham-se no tanque

Quem sabe que eu saí do mundo da poeira
E avanço subindo o flanco da Montanha Fria?

Poema atribuído a Han-Shan (séc. VII ?), editado em O vagabundo do Dharma - 25 poemas de Han-Shan, versões poéticas de Ana Hatherly, sobre tradução do chinês de Jacques Pimpaneau, Lisboa, Cavalo de Ferro Editores, 2003, p. 76.

Pintura de Marisa Noblejas, A 3ª Visão, 2005
Técnica mista sobre tela, 100 x 35 cm

As minhas imagens\Noruega


Palácio Real (Oslo)


Navio Fram (Frammuseet, Oslo)


Færlandsfjorden, de manhã cedo


Færlandsfjorden, glaciar ao fundo


Bøyabreen


Torre Rosencrantz (Bergen)

Mais ligações aqui.

Cantiga de amigo



Ai eu, coitada, como vivo em gram cuidado
por meu amigo que ei alongado!

Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!
Ai eu, coitada, como vivo em gram desejo
por meu amigo que tarda e nom vejo!
Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!
Poema atribuído a D. Sancho I (séc. XII), editado por
José Leite de Vasconcelos, Textos Arcaicos, 3ª ed., 1923, p. 17.

All around the world



África do Sul, Alemanha, Andorra, Angola, Arábia Saudita, Argélia, Argentina, Austrália, Áustria, Bélgica, Belize, Bolívia, Bósnia-Herzegovina, Brasil, Bulgária, Cabo Verde, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Croácia, Dinamarca, El Salvador, Emirados Árabes Unidos, Equador, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Estados Unidos da América, Estónia, Federação Russa, Filipinas, Finlândia, França, Grécia, Guatemala, Holanda, Honduras, Hong Kong, Hungria, Ilha Maurícia, Índia, Indonésia, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Japão, Jordânia, Jugoslávia, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, Macau, Malásia, Marrocos, México, Moçambique, Nicarágua, Nigéria, Noruega, Nova Zelândia, Panamá, Paquistão, Paraguai, Peru, Polónia, Porto Rico, Portugal, Quénia, Reino Unido, República Checa, República da Coreia, República Dominicana, Roménia, Singapura, Suazilândia, Suécia, Suíça, Tailândia, Taiwan, Tunísia, Turquia, Uruguai, Venezuela

Imagem de Site Meter, lista de eXTReMe Tracking.

Der Himmel über Berlin

















As asas do desejo (ou O céu sobre Berlim).

Imagens de Wim Wenders, Der Himmel über Berlin, 1987.

Split e o imperador

Foi Diocleciano quem primeiro descobriu esta baía de águas transparentes, no final do século III, e aí resolveu construir um enorme palácio (com cerca de 30 mil m2), para o que mandou vir pedra branca da ilha de Brač e duas esfinges do Egipto. E foi aí que viveu, depois da abdicação.


Reconstituição do palácio de Diocleciano

No século VII, as invasões bárbaras, de avaros e eslavos, devastaram a região, forçando os habitantes locais a fugir. Os sobreviventes da destruída cidade de Salona procuraram abrigo, uns nas ilhas, outros dentro das muralhas do palácio abandonado. As edificações romanas foram transformadas, de modo a dar origem a uma malha urbana mais adaptada às necessidades da população medieval. E assim nasceu a cidade de Split.


O Peristilo, à noite

O mausoléu do imperador viu-se convertido em catedral cristã, o templo de Júpiter em baptistério; as caves em lixeira; as esfinges egípcias mudaram de sítio; galerias de colunas foram cortadas, paredes deslocadas, janelas fechadas, portas abertas; um capitel foi transformado em mesa; ergueram-se torres, rasgaram-se ruas; construíram-se hotéis, abriram-se lojas e restaurantes, cibercafés e bares; recebeu-se o McDonald's, o Hugo Boss e a Benetton. O resultado final é hoje uma Babel, labiríntica e fascinante.


A Praça Nacional, por cima das cabeças dos turistas

Ao longo do tempo, a cidade esteve, sucessivamente, sob o domínio croata, húngaro, veneziano, francês, austro-húngaro, jugoslavo e novamente croata, cresceu para fora da fortificação, ganhou um porto, modernizou-se. É hoje a segunda maior cidade da Croácia e a maior da Dalmácia, com 200 mil habitantes. Em 1979, o centro histórico foi classificado como património da humanidade, passando a atrair hordas de turistas.


Galerija Ivana Meštrovića

Split foi também a localização escolhida por Ivan Meštrović para aí construir o palácio da sua família. Ivan Meštrović (1883-1962) é um dos nomes mais importantes da arte croata. Escultor, estudou em Viena e Paris (consta que terá sido um dos discípulos favoritos de Rodin), trabalhou e leccionou nos Estados Unidos e construiu muitos monumentos na sua pátria natal. Zagreb acolhe o seu atelier e museu; o palacete de Split foi convertido numa galeria, que alberga igualmente um importante espólio. Ambos os espaços são geridos pela Fundação Ivan Meštrović.


Ivan Meštrović, Job, 1946

Split é uma cidade inesquecível, pela inusitada mistura de épocas e culturas, pelo fascínio visual, pela curiosidade que suscitam todas aquelas ruelas labirínticas, e até pelo kitsch das togas dos turistas na Noite de Diocleciano.


Entrada no porto de Split

As cidades e o nome. 4.


Split

Clarice, cidade gloriosa, tem uma história atribulada. Várias vezes decaiu e refloresceu, tendo sempre a primeira Clarice como modelo inigualável de todo o esplendor, em comparação com o qual o estado presente da cidade não deixa de suscitar novos suspiros a cada volver das estrelas.
Nos séculos de degradação, a cidade, esvaziada das pestilências, baixando de estatura devido aos desmoronamentos de travejamentos e cornijas e aos aluimentos de terras, enferrujada e entupida por incúria ou falta dos responsáveis pela manutenção, repovoava-se lentamente ao reemergirem das caves e tocas hordas de sobreviventes que como ratos pululavam movidos pela ânsia de vasculhar e roer, e até de rebuscar e remendar, como pássaros que fazem ninho. Agarravam-se a tudo o que se pudesse retirar donde estava e pôr noutro lugar para servir para outro uso: os cortinados de brocado acabavam a fazer de lençóis; nas urnas cinerárias de mármore plantavam manjericos; as grelhas de ferro forjado arrancadas das janelas dos gineceus serviam para grelhar carne de gato sobre fogueiras de lenha talhada. Montada com as peças da Clarice imprestável, tomava forma uma Clarice da sobrevivência, toda tugúrios e pardieiros, esgotos infectos, coelheiras. No entanto, do antigo esplendor de Clarice não se perdera quase nada, estava tudo ali, simplesmente disposto numa ordem diferente mas não menos apropriada do que outrora às exigências dos habitantes.
Aos tempos de indigência sucediam-se épocas mais alegres: uma Clarice borboleta sumptuosa nascia da Clarice crisálida miserável; a nova abundância fazia a cidade transbordar de materiais edifícios objectos novos; afluía nova gente vinda de fora; já nada nem ninguém tinha alguma coisa a ver com a Clarice ou as Clarices de antes; e quanto mais a nova cidade se instalava triunfalmente no lugar e no nome da primeira Clarice, mais se dava conta de se afastar daquela, de destruí-la não menos rapidamente do que os ratos e o bolor: apesar do orgulho do novo fausto, no fundo do coração sentia-se estranha, incongruente, usurpadora.
E então os resquícios do primeiro esplendor que se tinham salvado adaptando-se a necessidades mais obscuras eram novamente deslocados, guardados sob campânulas de vidro, encerrados em vitrinas, colocados em almofadões de veludo, e já não porque podiam ainda servir para qualquer coisa, mas porque através deles se desejava recompor uma cidade de que já ninguém sabia nada.
Outras deteriorações e outros vigores se seguiram em Clarice. As populações e os costumes mudaram muitas vezes mais; restam o nome, a localização, e os objectos mais difíceis de quebrar. Cada nova Clarice, compacta como um corpo vivo com os seus odores e a sua respiração, ostenta como uma jóia o que resta das antigas Clarices fragmentárias e já mortas. Não se sabe quando estiveram os capitéis coríntios no alto das suas colunas: só se recorda de um deles que por muitos anos numa capoeira manteve a cesta onde as galinhas punham os ovos, e dali passou para o Museu dos Capitéis, em fila com os outros exemplares da colecção. Já se perdeu a ordem da sucessão das várias eras; que houve uma primeira Clarice é crença bem difundida, mas não há provas que o demonstrem; os capitéis poderiam ter estado nas capoeiras antes de irem parar aos templos, as urnas de mármore poderiam ter sido semeadas com manjerico antes de o serem com ossos de defuntos. De certeza só se sabe uma coisa: um certo número de objectos desloca-se num certo espaço, ora submerso por uma quantidade de objectos novos, ora consumando-se sem serem substituídos; a regra é misturarem-se todas as vezes e experimentar juntá-los de novo. Talvez Clarice haja sempre sido apenas uma barafunda de bugigangas partidas, mal combinadas, fora de uso.

Texto de Italo Calvino, Le città invisibili, Torino, Einaudi, 1972
(tradução portuguesa de José Colaço Barreiros, As cidades invisíveis, Lisboa, Editorial Teorema, 2003, pp. 108-110).

O homem do leme



Sozinho na noite
Um barco ruma para onde vai?
Uma luz no escuro
Brilha a direito, ofusca as demais

E mais que uma onda, mais que uma maré
Tentaram prendê-lo, impor-lhe uma fé
Mas vogando à vontade, rompendo a saudade
Vai quem já nada teme, vai o homem do leme

E uma vontade de rir
Nasce no fundo do ser
E uma vontade de ir
Correr o mundo e partir
A vida é sempre a perder
No fundo do mar
Jazem os outros, os que lá ficaram
Em dias cinzentos
Descanso eterno lá encontraram
E mais que uma onda, mais que uma maré
Tentaram prendê-lo, impor-lhe uma fé
Mas vogando à vontade, rompendo a saudade
Vai quem já nada teme, vai o homem do leme

E uma vontade de rir
Nasce no fundo do ser
E uma vontade de ir
Correr o mundo e partir
A vida é sempre a perder
No fundo horizonte
Sopra o murmúrio para onde vai?
No fundo do tempo
Foge o futuro, é tarde de mais
E uma vontade de rir
Nasce no fundo do ser
E uma vontade de ir
Correr o mundo e partir
A vida é sempre a perder


Letra de Tim, música de Xutos & Pontapés. Xutos & Pontapés, Cerco, LP Dança do Som, 1985.
Imagens de Gore Verbinski, Pirates of the Caribbean: The Curse of the Black Pearl, 2003.


PS.: Parabéns, Dr. Zilch!

Maria Papa-Léguas



Quando era pequena, coleccionava selos. Entre muitas coisas, é verdade, coleccionava selos. Nunca tive grandes pretensões filatélicas, nem nunca me interessaram grandemente os exemplares novinhos, a brilharem a tipografia. Pelo contrário, delirava com os carimbos de tinta desbotada, virava os selos por todos os lados a tentar reconstituir letras e números em falta, a decifrar locais e datas. Fascinavam-me as viagens que aqueles pedacinhos de papel tinham feito, por países e cidades de que só tinha ouvido falar, ou nem isso. Completava a pesquisa com enciclopédias e atlas, tentava compreender épocas, guerras e reinados, metrópoles e colónias, países que tinham mudado de nome, nomes que já não correspondiam a nenhum país, países divididos, reunificados, nascidos e desaparecidos, heróis e ex-heróis, faunas e floras, moedas e alfabetos.
Há já muitos anos que os meus classificadores estão abandonados numa prateleira, à espera de tempo e de renascido interesse - muito antes de me ter entusiasmado a coleccionar euros (agora, ou alargam a zona euro, ou as minhas moedas acabam convertidas em géneros...). Depois, descobri outro passatempo, mais refinado: coleccionar capitais europeias. Melhor: coleccionar países, continentes, mares e oceanos.
Não é muito original: percebi que se tornou uma brincadeira de adultos, um jogo para as horas mortas de voo (quando não há comida) e para as esperas no aeroporto. «Eu já tenho 35, E tu?» «Ainda só tenho 23...». E desenrola-se a lista, como se se trocassem cromos: «Tenho, tenho, tenho, não tenho...».
Como qualquer jogo, precisa de regras: escalas em aeroportos não contam, porque aeroporto é terra de ninguém; travessias terrestres, fluviais, marítimas ou aéreas, sem tocar directamente o solo, também não valem; o contacto com os habitantes e a cultura locais somam pontos; menos de meio dia num país, só visto caso a caso, e sempre dependente da alínea anterior.
E que Deus nos mantenha o espírito sempre jovem!...


Holanda: Agosto 2003
> Amesterdão: 5h30m



Bélgica: Agosto 2004
> Bruxelas: 3h00m



Bósnia-Herzegovina: Julho 2005
> Neum: 0h20m


Ilustração de Laura Costa, para Costa Barreto & Laura Costa, Maria Papa-Léguas, Editorial Infantil Majora, s/d, p. 4.

Kafka











Praga, 1919.

Imagens de Steven Soderbergh, Kafka, 1991.

Blimunda



Nove anos procurou Blimunda. Começou por contar as estações, depois perdeu-lhes o sentido. Nos primeiros tempos calculava as léguas que andava por dia, quatro, cinco, às vezes seis, mas depois confundiram-se-lhe os números, não tardou que o espaço e o tempo deixassem de ter significado, tudo se media em manhã, tarde, noite, chuva, soalheira, granizo, névoa e nevoeiro, caminho bom, caminho mau, encosta de subir, encosta de descer, planície, montanha, praia do mar, ribeira de rios, e rostos, milhares e milhares de rostos, rostos sem número que os dissesse, quantas vezes mais os que em Mafra se tinham juntado, e de entre os rostos, os das mulheres para as perguntas, os dos homens para ver se neles estava a resposta, e destes nem os muito novos nem os muito velhos, alguém de quarenta e cinco anos quando o deixámos além no Monte Junto, quando subiu aos ares, para sabermos a idade que vai tendo basta acrescentar-lhe um ano de cada vez, por cada mês tantas rugas, por cada dia tantos cabelos brancos. Quantas vezes imaginou Blimunda que estando sentada na praça duma vila, a pedir esmola, um homem se aproximaria e em lugar de dinheiro ou pão lhe estenderia um gancho de ferro, e ela meteria a mão ao alforge e de lá tiraria um espigão da mesma forja, sinal da sua constância e guarda, Assim te encontro, Blimunda, Assim te encontro, Baltasar, Por onde foi que andaste em todos estes anos, que casos e misérias te aconteceram, Diz-me primeiramente de ti, tu é que estiveste perdido, Vou-te contar, e ficariam falando até ao fim do tempo.
Milhares de léguas andou Blimunda, quase sempre descalça. A sola dos seus pés tornou-se espessa, fendida como uma cortiça. Portugal inteiro esteve debaixo destes passos, algumas vezes atravessou a raia de Espanha porque não via no chão qualquer risco a separar a terra de lá da terra de cá, só ouvia falar outra língua, e voltava para trás. Em dois anos, foi das praias e das arribas do oceano à fronteira, depois recomeçou a procurar por outros lugares, por outros caminhos, e andando e buscando veio a descobrir como é pequeno este país onde nasceu, Já aqui estive, já aqui passei, e dava com rostos que reconhecia, Não se lembra de mim, chamavam-me Voadora, Ah, bem me lembro, então achou o homem que procurava, O meu homem, Sim, esse, Não achei, Ai pobrezinha, Ele não terá aparecido por aqui depois de eu ter passado, Não, não apareceu, nem nunca ouvi falar dele por estes arredores, Então cá vou, até um dia, Boa viagem, Se o encontrar.

José Saramago

In: Memorial do Convento, Lisboa, Editorial Caminho, 1982 (8ª ed., 1984, pp. 355-356).