#TBT: Amadora, Fonte dos Passarinhos



A minha infância foi marcada pelas faltas. Ele era a falta do leite, que levava a racionamentos e longas filas à porta dos postos de abastecimento. A minha mãe deixava-nos a dormir e ia, de madrugada, para a bicha, à espera que abrissem o estabelecimento e lhe concedessem o pacote diário de meio litro de leite pasteurizado. E ainda ia a correr até ao posto seguinte, onde poderia, com sorte, conseguir mais outro desses pacotinhos plásticos de má memória. Tínhamos sorte, apesar de acordarmos sozinhos em casa: muitas mães tiravam os filhos da cama e levavam-nos com elas, cuidadosamente dispersos pelo meio da fila, para não chamarem a atenção, e assim conseguiam mais pacotes.
Ele era a falta do bacalhau e das batatas. Ele era os constantes apagões eléctricos, de uma rede que não estava dimensionada para uma tão rápida urbanização. Nessas alturas, íamos para a janela, ver se os outros bairros também estavam às escuras, e esperar, até que as luzes se começassem a acender, uma a uma. Quando a falha se prolongava, acabávamos a jantar à luz do candeeiro a petróleo, que comprávamos no carvoeiro ou na drogaria do Sr. Rogério. Tínhamos sempre um frasco de reserva, daquele líquido cor-de-rosa, brilhante e translúcido, e muitas velas de estearina.
Ele era a televisão que se apagava, de repente, e nos deixava a olhar para o écran, à espera que aparecesse a fatídica inscrição "Pedimos desculpa por esta interrupção. O programa segue dentro de momentos". Nós, as crianças, exasperávamos, porque sabíamos que esses momentos podiam durar todo o serão, mas os adultos suspiravam de alívio: "É de lá". Menos uma despesa no horizonte. Sim, que não eram todas as famílias que tinham um aparelho que recebesse VHF e UHF, e eram bem caros. Ainda me lembro dos vizinhos que só apanhavam o primeiro canal.
Ele era as frequentes rupturas nas condutas de água que nos deixavam sem pinga nas torneiras. Em geral, tínhamos vasilhas de reserva, mas, quando éramos apanhados desprevenidos, íamos, armados de garrafões (de vidro, com revestimento de plástico branco ou empalhados), para a bicha da fonte do bairro, aquela que, mais tarde, emprestou o nome à primitiva Rua Projectada à Avenida Marechal Carmona.




Amadora, Agosto de 2011

Há tempos, encontrei, na Internet, a fotografia do topo, mas não reconheci a fonte, de que só me lembro que tinha uma bica que brotava de uma parede, junto ao ramal de São Brás do Aqueduto das Águas Livres. Todos me garantem que é mesmo ela, até o meu irmão, mais novo, pelo que deve ser. Desapareceu, já nem sei quando, talvez na mesma altura que o bairro da Ribeira da Falagueira, que já a tinha engolido, no tempo em que o reforço da rede de abastecimento a tornara obsoleta.

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