Todos os (nossos) Santos (11)


Mafra, Julho de 2006

À frente, por serem de maior grandeza corporal e portanto lhes caber justa capitania, vão S. Vicente e S. Sebastião, ambos mártires, embora do martírio daquele não se veja outro sinal que a simbólica palma, o resto são atavios de diácono e emblemático corvo, ao passo que o outro santo se apresenta na conhecida nudez, atado à árvore, com aqueles mesmos buracos de horríveis feridas, donde por prudência se desencaixaram os dardos, não fossem partir-se durante a viagem. Logo a seguir vêm as damas, três graças preciosas, a mais bela de todas Santa Isabel Rainha da Hungria, que morreu na idade de vinte e quatro anos apenas, e depois Santa Clara e Santa Teresa, mulheres muito apaixonadas, que em fogo interior arderam, é o que se presume das suas acções e palavras, quanto mais presumiríamos se soubéssemos de que é feita a alma das santas. Quem bem chegado vem a Santa Clara é S. Francisco, não admira a preferência, conhecem-se desde Assis, encontraram-se agora neste caminho de Pintéus, de pouco valeria a amizade, ou lá o que foi que os uniu, se não continuassem a conversa na palavra que ficou em meio, como íamos dizendo. Se este é o lugar que realmente melhor conviria a S. Francisco, por ser, de todos os santos que vão nesta leva, o de mais feminis virtudes, de coração manso e alegre vontade, também em lugar certo vêm S. Domingos e Santo Inácio, ambos ibéricos e sombrios, logo demoníacos, se não é isto ofender o demónio, se não seria justo, afinal, dizer que só um santo seria capaz de inventar a inquisição e outro santo a modelação das almas. É evidente, para quem conheça estas polícias, que S. Francisco vai sob suspeita.



Mas, nisto de santidades, há-as para todos os gostos. Quer-se um santo dedicado ao trabalho da horta e ao cultivo da letra, temos S. Bento. Quer-se outro de vida austera, sábia e mortificada, avance S. Bruno. Quer-se ainda outro para pregar cruzadas velhas e reunir cruzados novos, não há melhor que S. Bernardo. Vêm os três juntos, talvez por parecenças de rosto, talvez porque as virtudes de todos, somadas, fariam um homem honesto, talvez por terem nos nomes a mesma primeira letra, não é raro juntarem-se as pessoas por acasos desses, quem sabe se não foi por esta precisa razão que se uniram algumas que conhecemos, como Blimunda e Baltasar, que, diga-se a propósito, falamos de Baltasar, é boieiro de uma das juntas que vão puxando S. João de Deus, único santo português da confraria desembarcada da Itália em Santo António do Tojal e que vai, como quase tudo de que se fala nesta história, a caminho de Mafra.



Atrás de S. João de Deus, cuja casa em Montemor foi visitada, há mais de ano e meio, por D. João V, quando levou a princesa à fronteira, e dessa visita não se falou na ocasião própria, o que demonstra a pouca importância que damos às glórias nacionais, oxalá o santo nos perdoe a ofensa da omissão, atrás de S. João de Deus, íamos dizendo, segue uma meia dúzia doutros bem-aventurados de menos resplandecência, sem menosprezo dos muitos atributos e virtudes que os exornam, mas todos os dias a experiência nos ensina que, não ajudando a fama no mundo, não se alcança a celebridade no céu, desigualdade flagrante de que são vítimas todos estes santos, por sua menor significância reduzidos aos nomes, João da Mata, Francisco de Paula, Caetano, Félix de Valois, Pedro Nolasco, Filipe Neri, enunciados assim parecem homens comuns, e vá lá que não se podem queixar, vai cada qual no seu carro, e não a esmo, deitadinhos como os outros de cinco estrelas em macio leito de estopa, lã e sacos de folhelho, desta maneira não se amarrota a prega nem se torce a orelha, são estas as fragilidades do mármore, tão rijo parece, e com duas pancadas perde Vénus os braços. E nós vamos perdendo a memória, ainda agora juntámos Bruno, Bento e Bernardo a Baltasar e Blimunda, e esquecemos Bartolomeu, de Gusmão ou Lourenço, como queiram, mas desprezado é que não. Bem certo é o que se diz, ai de quem morre, duas vezes ai se não havia santidade verdadeira ou fingida que o salvasse.



Já passámos Pintéus, vamos no caminho de Fanhões, dezoito estátuas em dezoito carros, juntas de bois à proporção, homens às cordas na conta do já sabido, porém não é isto aventura que se compare com a pedra de Benedictione, são coisas que só podem acontecer uma vez na vida, se o engenho não engenhasse maneiras de tornar fácil o difícil, mais valia ter deixado o mundo na sua primeira brutidão. As populações vêm ao caminho festejar a passagem, só estranham de ver os santos deitados, e nisso têm razão, que mais formoso e edificante espectáculo não dariam as sacras figuras se viajassem de pé sobre os carros, como se fossem de andor, até os mais baixitos, que não chegam a três metros, medida nossa, seriam avistados de longe, que fariam os dois da frente, S. Vicente e S. Sebastião, quase cinco metros de altura, gigantões atléticos, hércules cristãos, campeões da fé, olhando lá do alto, por cima dos valados e das copas das oliveiras, o vasto mundo, então sim, seria isto religião que nada ficaria a dever à grega e à romana. Em Fanhões parou o cortejo porque os moradores quiseram saber, nome por nome, quem eram os santos que ali iam, pois não é todos os dias que se recebem, ainda que de passagem, visitantes de tal grandeza corporal e espiritual, uma coisa é o quotidiano trânsito dos materiais de construção, outra, poucas semanas há, o intérmino cortejo dos sinos, mais de cem, que hão-de rebimbar nas torres de Mafra a imperecível memória destes acontecimentos, outra ainda este panteão sagrado. Foi o pároco da terra chamado à ciceronia, mas não soube dar boa conta do recado, porque nem todas as estátuas tinham visível o nome do pedestal, e em muitos casos por aí se ficaria a ciência identificadora do padre, uma coisa é ver logo que este é S. Sebastião, outra seria dizer, de cor e salteado, Amados filhos, o santo que aqui estão vendo é S. Félix de Valois, que foi educado por S. Bernardo, que vai lá à frente, e fundou com S. João da Mata, que aí vem atrás, a ordem dos trinitários, a qual foi instituída para resgatar os escravos das mãos dos infiéis, vêde que admiráveis histórias se contam na nossa santa religião, Ah, ah, ah, ri o povo de Fanhões, e quando é que vem a ordem para resgatar os escravos das mãos dos fiéis, ó senhor prior.



Vistas as dificuldades, foi o padre ao governador deste transporte e pediu consulta dos papéis de exportação que tinham vindo de Itália, subtileza que lhe valeu recuperar a abalada credibilidade, e então puderam ver os moradores de Fanhões o seu ignorante pastor, alçado sobre o muro do adro, pregoando os benditos nomes pela ordem que iam passando os carros, até ao último, por acaso era S. Caetano, levado pelo José Pequeno, que tanto sorria aos aplausos como ria de quem os dava. Mas este José Pequeno é maligna criatura, por isso o puniu Deus, ou o Diabo o puniu, com a corcova que traz às costas, há-de ter sido Deus o do castigo, porque não consta que tenha o Diabo esses poderes em vida do corpo. Acabou o desfile, segue a santaria para Cabeço de Monte Achique, boa viagem.

José Saramago, Memorial do Convento, Lisboa: Editorial Caminho, 1982 (8ª ed., 1984, pp. 319-322).

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